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Política e antipolítica na Itália

Luiz Sérgio Henriques - Junho 2013
 

Corre o risco de ser esquecido, como opaco episódio de crônica policial, o gesto de um desempregado italiano que, no dia em que se instalava um novo e talvez precário governo, atirou repetidas vezes contra a residência oficial do primeiro-ministro, ferindo aleatoriamente alguns policiais da guarda. Um ato de violência restrito, sem dúvida, mas que traz em si um duríssimo recado à chamada classe política, que tanto na Itália quanto na Europa de um modo geral tem estado aquém das suas responsabilidades, prisioneira da austeridade destrutiva, de matriz alemã, que parece condenar toda uma geração a uma situação de desemprego permanente e acarretar a ruína dos traços mais generosos do Estado social de direito.

Aquele gesto condensa expressões que temos ouvido com insistência em latitudes muito variadas. Há poucos anos, por exemplo, gritava-se na Argentina, em relação aos políticos: "que se vayan todos". Ainda agora, na França ou na Espanha, surgem manifestações de indignação contra as instituições e, inclusive, os respectivos partidos socialistas. E na Itália o fenômeno se repetiu nas eleições de fevereiro último, ainda que com nuances diferentes: aqui, um cômico dublê de político, Beppe Grillo, levou seu Movimento 5 Estrelas à condição de primeiro partido, individualmente considerado, na Câmara dos Deputados, obtendo de modo fulminante pouco mais de um quarto dos votos.

Grillo, protagonista inesperado da versão italiana da antipolítica, não perdeu nenhuma ocasião de agitar o tema com o qual conseguiu arregimentar a imensa massa de desiludidos com o sistema político tradicional: "Rendam-se, vocês (políticos de profissão) estão cercados". O ativismo digital, escolhido como instrumento privilegiado de construção do Movimento e de mobilização eleitoral, apresentou-se como essencialmente participativo, de "baixo para cima", ecoando antigas aspirações de democracia direta, mas não faltou quem observasse que o protagonismo do chefe em nenhum momento fez esquecer aquele que efetivamente manda.

A irrupção estridente de Grillo combinou-se com a não menos inesperada ressurreição política de Silvio Berlusconi, expressão de uma direita simultaneamente populista e economicamente liberal, possivelmente sem equivalente na Europa. Na Itália, sim, a reunião numa só figura do magnata das comunicações e do dirigente arrogante de uma direita difusa, individualista e voltada para o próprio interesse imediato, configura um "conflito de interesses" ameaçador para a democracia. E neste cenário a esquerda e a centro-esquerda se descobriram, mais uma vez, minoritárias. Talvez estruturalmente minoritárias, tal como o foram no passado, em outras e mudadas circunstâncias.

Que esta esquerda conta, e apesar de tudo ainda conta muito, é revelado pelo fato de que, numa situação de verdadeira emergência, a presidência da República - com funções de alto simbolismo constitucional num regime parlamentar - ainda seja ocupada por um dirigente histórico do antigo PCI. E também pelo fato de que o próprio governo, afinal, tenha sido confiado a Enrico Letta, expressão da área moderada do Partido Democrático, não obstante a difícil coabitação - imposta pelos resultados eleitorais - com o agrupamento berlusconiano.

A centro-esquerda constituída pelo Partido Democrático não é o resultado de uma aposta pequena. Não à toa, houve quem, em vista do sucesso conjunto de Grillo e Berlusconi, tenha nisso identificado o fim definitivo do togliattismo e do berlinguerismo. Em Togliatti e Berlinguer, secretários-gerais do PCI, dissolvido praticamente em concomitância com a queda do Muro de Berlim e o fim do socialismo real, veem-se as raízes mais distantes de uma política de alianças com o mundo católico democrático e com o reformismo socialista, a qual explicaria as metamorfoses daquele partido, que culminaram em 2007 com a criação do PD.

A aposta, dissemos, não foi pequena. Partiu da refinada cultura política da esquerda italiana a decisão de se aventurar em mar aberto, mais além das aporias e contradições do comunismo histórico, especialmente quando este foi poder e constituiu estados invariavelmente autoritários ou, se quisermos, totalitários. Num país de democracia difícil, em que a "expressividade das instituições" (Umberto Cerroni), corporificada numa república democrática "baseada no trabalho", conviveu com ameaças graves de involução, como as representadas por golpes frustrados, poderes ocultos e o terrorismo de diferentes tons, o velho PCI sempre destacou sua função nacional e seu papel de sustentação da ordem constitucional, mesmo estando invariavelmente na oposição por conta das injunções da Guerra Fria.

Era de certo modo natural que daí partisse a tentativa de preencher com conteúdos novos o que já se chamou de palavra "vazia", como são, em geral, as palavras antecedidas pelo prefixo "pós" e, em particular, o "pós-comunismo". A escolha do reformismo como método de ação e a adesão plena aos ditames do Estado democrático representativo são passagens inevitáveis de tal transformação.

Sabe-se, no entanto, que a redefinição de velhas identidades e, com mais razão, a criação de novas não é processo linear nem indolor. Implica não só o que o cientista político Marco Aurélio Nogueira, aqui mesmo nesta página, repetidas vezes tratou como "sofrimento das organizações", mas também o sofrimento pessoal puro e simples, inerente a todo processo verdadeiro de mudança.

Na vida como na política, processos deste tipo, sem cancelar o passado, devem superá-lo com audácia e descortino. Abandonam, daquele passado, tudo que esteve marcado pelo messianismo ideológico, para tornar outra vez possível a laica esperança de sociedades mais livres e iguais.

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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.

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Fonte: O Estado de S. Paulo, 18 maio 2013.

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