A relação entre ideias e mundo real não costuma ser unÃvoca nem se prestar a simplificações. Desajustes entre o que os homens efetivamente fazem, o que dizem sobre si e sobre a ação que empreendem constituem situação ineliminável da vida polÃtica. Não são, pois, traço caracterÃstico da direita ou da esquerda, algo que se aplique com exclusividade a esta ou à quela entre as frações que ocupam o leque das opções disponÃveis em cada circunstância.
Caso clássico, neste sentido, e que atingiu em cheio a trajetória da esquerda, foi o que se deu, a partir de 1917, com a justificação leninista e, depois, stalinista dos acontecimentos russos. Como se sabe, para o fundador do Estado soviético, o comunismo poderia ser sintetizado numa fórmula que reuniria sovietes e eletricidade. Por uma dessas duras réplicas da história, a ideologia marxista-leninista, que seria a codificação do bolchevismo no poder, logo recobriria, velando mais do que esclarecendo, uma realidade em que os sovietes (a democracia direta) se atrofiariam rapidamente e a eletrificação (a modernização) se daria "pelo alto", num perÃodo curtÃssimo de tempo e com brutal custo humano encarnado na coletivização do campo e na tragédia do stalinismo.
O século XIX brasileiro é outro exemplo evidente de que o mundo ideal e o dos fatos se articulam de modo pouco ortodoxo. A explicação que daquele século nos deu Florestan Fernandes apreende, com sagacidade, os caminhos de uma "revolução encapuçada" que, escorada pelo elemento dinâmico do liberalismo polÃtico, minaria os fundamentos da ordem senhorial, preparando - é verdade que ao longo de décadas, que viram a insólita associação de liberalismo e escravidão - o surgimento da modernidade capitalista.
Uma hipótese a ser examinada para entender o perÃodo iniciado com a Constituição de 1988 é que, uma vez mais, estarÃamos lidando com alguma inédita ou pouco comum ironia da história. O grande e heterogêneo conjunto de ideias e práticas que se associa à social-democracia será talvez o que mais apropriadamente descreve a "ideologia" da nossa Carta, com seus novos mecanismos de criação de direitos a partir do reconhecimento jurÃdico de interesses legÃtimos de todos os setores sociais, especialmente dos subalternos. E, no entanto, as correntes polÃticas próximas daquele ideário se dividiriam em facções crescentemente irreconciliáveis, cuja conflituosidade por vezes espanta o observador desatento aos movimentos mais profundos que orientam o comportamento de atores individuais e coletivos, bem como a relação entre cultura e polÃtica.
Num exame menos superficial, tucanos e petistas de modo algum são inteiramente idênticos por origem ou orientação de valor, mas as diferenças que exibem e até exasperam não autorizam colocá-los em compartimentos antagônicos ou sequer muito distintos, ao contrário do que possam sugerir os tons da refrega a que se entregam. Os governos Fernando Henrique e Lula registraram avanços sociais dignos de nota, em razoável grau de continuidade, como atestam sucessivas avaliações, a mais recente das quais insuspeito Ãndice de desenvolvimento humano referido à totalidade dos municÃpios brasileiros. Nenhuma revolução social, naturalmente, mas um interessante progresso relativamente espalhado pelo território, cuja consolidação e ampliação podem recolher considerável nÃvel de consenso e gerar mobilização ainda maior de recursos, reduzindo a pobreza e também a desigualdade, numa "revolução encapuçada" mais ambiciosa, a ser conduzida estritamente dentro dos parâmetros constitucionais.
Os atores, dizÃamos, não são idênticos: uns, mais atentos à dimensão institucional da democracia representativa, apesar da ferida representada pela malfadada emenda da reeleição em benefÃcio dos então ocupantes do poder; outros, mais cuidadosos com as urgências sociais, ainda que o desleixo com os aspectos "formais" da democracia - aspectos "burgueses", dir-se-ia na velha cultura bolchevique - os tenha feito incorrer não em episódio "comum" de corrupção, explicável pela generalizada força do dinheiro na polÃtica contemporânea, mas sim num ataque frontal ao Parlamento, como aquele sobre o qual o STF ora se debruça novamente.
DifÃcil imaginar Fernando Henrique, não obstante a manobra da reeleição, nas vestes de caudilho: para tanto lhe falta, inclusive, o physique du rôle. Preocupante observar na variante social-democrata rival, não obstante a recusa do terceiro mandato, uma proximidade pelo menos ideal com a presente vaga dos presidentes latino-americanos que se querem "eternos": um sinal de que esta variante terá se modernizado de modo insuficiente, podendo condescender, se as condições o permitirem, com velhas taras autoritárias que assolam a tradição e não são atributo exclusivo dos "reacionários".
Se esta chave de leitura for minimamente correta, isto é, se estivermos assistindo ao confronto desabrido entre duas vertentes da mesma social-democracia, é o caso de temer pela qualidade das instituições, que constituem o bem mais precioso herdado das lutas contra o regime autoritário. Não custa fazer outro paralelo com a história trágica do século XX e lembrar que os bolcheviques - ramo radicalizado do grande tronco socialista - em certo momento se lançaram contra os "social-fascistas" - os social-democratas clássicos -, facilitando a emergência do nazismo, o mal absoluto por definição.
Estamos muito longe deste cenário de pesadelo, mas bem podemos imaginar outras formas de degeneração do discurso e da arena polÃtica causadas pelo espÃrito de cruzada sem tréguas contra o adversário, considerado o inimigo a varrer em cada episódio eleitoral. Algumas destas formas, infelizmente, já podem talvez ser entrevistas a olho nu.
----------
Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.