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O claro enigma das liberdades

Luiz Sérgio Henriques - Abril 2014
 

Há frases, ditas à direita ou à esquerda, que nos acompanham e martelam, com seu poder de síntese, em variadas circunstâncias, não importa quem as tenha pronunciado. Frases como aquela, atribuída ao neoliberal Milton Friedman, segundo a qual não há almoço grátis, ou a de Simonsen, para a qual, se a inflação aleija, as contas externas desarranjadas matam. Já fora do domínio da "ciência lúgubre", cujos cobertores são sempre curtos e onde só o incurável triunfalismo pode decretar, de tempos em tempos, a descoberta da pedra filosofal, pertence a este grupo de sentenças, na política, entre outras, a ideia de que "a clandestinidade mata".

De evidência solar, esta ideia foi expressa por Gildo Marçal Brandão, um dos melhores analistas da trajetória do velho PCB. Gildo pretendia assim resumir o combate interno entre as duas almas do partidão, a militarista (e clandestina) e a civilista, que o acompanharam até quase o fim e se explicitaram de modo contundente, como não poderia deixar de ser, na crise de 1964 e de mudança de regime que daí adviria - da experiência democrática sob a guarda da Constituição de 1946 para o subsequente período excepcional de cerca de 20 anos, ele próprio ritmado por mudanças nada triviais, como a que, em 1968, assinalou o endurecimento repressivo sob a inspiração do AI-5.

A ilegalidade determinada pelo Tribunal Eleitoral, em 1947, não afetou apenas aquele partido, então o mais importante da esquerda marxista (ou marxista-leninista, para usar o termo da época), mas a própria qualidade da democracia entre 1946 e 1964. Impossibilitou, por princípio, uma coerente dinâmica legalista do PCB, apoiado em sua alma civil, e a consequente ampliação e atualização da democracia brasileira, aproximadamente como acontecia na França e, especialmente, na Itália. Sem dúvida, uma possibilidade entre outras, não passível de comprovação factual, mas sustentada pela crença razoável de que as exigências democráticas pressionam todos os atores e as respectivas agendas, modificando inclusive seus fundamentos de tipo integrista, como os que saturavam o "marxismo-leninismo".

A clandestinidade, porém, mata. No drama de 1964, enquadrado ainda por cima no rígido esquema do bipolarismo internacional, que garantia à direita brasileira a mobilização automática do "campo ocidental" - naquele drama, dizíamos, faltou à esquerda o sujeito que, tal como na crise da renúncia de Jânio, pautasse a própria ação - e a de todos os demais setores reformistas, em primeiro lugar o PTB - pela defesa da legalidade constitucional a todo custo, ampliando o consenso em torno do presidente legítimo e, consequentemente, encurtando o terreno de manobra dos golpistas de qualquer origem ou orientação.

Isso teria implicado a renúncia à hipótese continuísta de um novo mandato para João Goulart, vedada constitucionalmente. Teria significado, nesta mesma linha, a deflagração do processo sucessório regularmente programado, com a candidatura de Juscelino Kubitschek, um democrata para cuja eleição em 1955 contribuíram os comunistas (na ilegalidade!), e também com a candidatura viável e competitiva de um representante da direita, evidentemente Carlos Lacerda. Uma esquerda lúcida, civilista, adepta das reformas, teria visto tempestivamente, e não só depois do desastre, que até um governo Lacerda, com o que significasse em termos de deixar a iniciativa aos adversários, seria infinitamente preferível a qualquer intervenção militar, com os desdobramentos imprevisíveis que teria, e teve, nos anos seguintes.

Forçoso mencionar, por dever elementar de justiça, o que neste sentido tem dito reiteradas vezes, ao longo dos anos, um dos últimos grandes dirigentes vivos do velho partidão e protagonista dos fatos de abril (cf. a entrevista de Marco Antônio Tavares Coelho a Luiz Carlos Azedo, "Era possível evitar o golpe de 64", Correio Braziliense, 28 de março de 2014). E, longe de se esgotar sua validade na explicação do colapso do governo Goulart, o raciocínio projeta-se para os acontecimentos posteriores. De fato, a alma militarista dos comunistas, incendiada por acontecimentos recentes no Terceiro Mundo, como, em especial, a revolução cubana, conheceria uma revivescimento, reforçado, ainda por cima, por um corte geracional acelerado nos anos 1960, que, sob alguns de seus aspectos mais radicais e intolerantes, não estimulava o convívio democrático e desvalorizava a institucionalidade "burguesa".

O "combate nas trevas" da extrema-esquerda militarizada, isolada socialmente e fadada a ser moída nas máquinas de morte montadas com o recrudescimento ditatorial, teve como contrapartida no campo oposicionista a sempre interessante e fecunda aliança entre liberais e comunistas do PCB, alinhados desde o começo no MDB, o "partido consentido" que acirraria as dificuldades do regime mediante formas superiores de luta, que podem ser sintetizadas no mecanismo historicamente decisivo representado pelo voto universal. Uma aliança que, a exemplo das frentes antifascistas dos anos 1930, em alguns casos teve o poder de alterar positivamente a cultura política até mesmo dos PCs stalinizados, ampliando seu raio de influência ao indicar o rumo de afastamento dos vários e entrelaçados aspectos autoritários (e totalitários) do bolchevismo original.

Aqui, porém, não se trata de fazer ou discutir doutrina, mas de saber na prática, a cada momento, se as esquerdas, hoje não mais clandestinas e muitas vezes com poder de mando legítimo, decifraram plenamente o claro enigma das liberdades "burguesas" e o assimilaram a seu patrimônio de valores. De uma resposta positiva a esta questão incessante dependem, em grande parte, as possibilidades de renovação democrática da civilização brasileira.

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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil. 



Fonte: O Estado de S. Paulo, 16 abr. 2014.

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