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Os marxismos no mundo contemporâneo

Adelson Vidal Alves - Julho 2014
 

Jaldes Reis de Meneses e Rubens Pinto Lyra (Orgs.). Marxismos na contemporaneidade. Tópicos de política, economia e direito. João Pessoa: Ed. UFPB, 2013. 364p.

Este livro é resultado do esforço de nove professores que procuraram refletir sobre o marxismo no mundo contemporâneo.

Tratando do marxismo e do socialismo no século XXI, estão Ivo Tonet e Fernando Magalhães. O primeiro busca comprovar a atualidade do marxismo, com centro na ontologia do ser social. Traz para os leitores o quanto ainda são válidas muitas das reflexões e descobertas de Marx. A historicidade da vida social, o materialismo dialético e a centralidade do trabalho na construção do ser social não seriam apenas acertos teóricos do filósofo alemão, mas ferramentas auxiliares na luta dos trabalhadores, que, teoricamente equipados, se fortalecem na luta por sua emancipação. O autor mostra o contexto da produção literária de Marx e sua concepção materialista da filosofia, o que fez o alemão deixar de lado a abstração e a metafísica, para analisar a fundo as estruturas econômicas da sociedade, tendo em vista compreender quem são os homens e como a sociedade se move.

Fernando Magalhães escreve sobre a perspectiva de um futuro comunista. Parte de Hugo Chávez e seu ainda mal compreendido sonho do socialismo em nosso século, para especular sobre o modelo socialista ideal para nossos tempos e a melhor forma de transição. Utiliza-se de teóricos como Antonio Negri e Slavoj Žižek, o que, de certa forma, o conduz a pequenas indecisões na questão da democracia política e sua relação com a luta socialista. Apresenta pouco apreço por nossa moderna institucionalidade, dando a entender o quanto se faz necessário ir além da democracia representativa, ainda que não negue a ela utilidade. Chega à conclusão de que a representação pode e deve dispensar os partidos políticos. Sua pouca clareza e a incompreensão da importância de conservar conquistas - podemos dizer: liberais - da dimensão democrática numa nova ordem social são os pontos frágeis de seu texto.

Na parte que trata da política, o livro apresenta os melhores artigos. Rubens Lyra resgata Kautsky na crítica ao processo revolucionário na Rússia Soviética. Recupera, do teórico da II Internacional, críticas ao caminho autoritário que o regime seguiu. Mostra o quanto Kautsky tinha razão ao alertar sobre o nexo "indissolúvel" entre socialismo e democracia política. Traz-nos, com certa competência, considerações históricas do "mestre do marxismo" que se propôs rever profundamente o projeto marxista de transição revolucionária. Apesar do esforço argumentativo a favor de Kautsky, peca pelo excesso de defesa e, principalmente, por responsabilizar demasiadamente Lenin por conta do estrago causado pela burocratização ao processo revolucionário. Esquece-se de que, mesmo tendo Lenin defendido, em alguns momentos, restrições às liberdades, ele fez defesas democráticas, como no debate com Trotski sobre a estatização dos sindicatos e no alerta sobre a figura perigosa de Stalin.

José Antonio Spinelli propõe-se analisar o "socialismo em um só país". Para isso recorre a Trotski e a Rosa Luxemburg. Mostra todas as dificuldades que se apresentavam a uma Rússia que se pretendia socialista, mas que ainda não havia conseguido amadurecer as condições objetivas para isso. Bem menos duro com Lenin, traz avaliações críticas que se concentram mais no período stalinista. Um artigo que não pretende finalizar a discussão sobre as reais possibilidades de a revolução se dar em um só pais, mas sim trazer parte do debate teórico que ocorreu em meio a um momento de crise, indecisão e burocratização na "Pátria do socialismo". Elementos que contribuíram para a restrição à liberdade de expressão na URSS.

Finalizando o núcleo político, está Jaldes Reis de Meneses, que abordou a proposta da hegemonia como contrato em Carlos Nelson Coutinho. O marxista brasileiro recebe, podemos dizer, uma homenagem em maior estilo: expõem-se as virtudes, assim como se criticam as possíveis lacunas de seu trabalho. Jaldes analisa as proposições de Carlos Nelson sempre em contato com seus mestres, sobretudo Marx, Lukács e Gramsci. Os escritos de Carlos Nelson, segundo Reis, consagram um marxismo que já não se propõe tomar o Estado de assalto; esta instância deixa de ser simples "comitê executivo das classes dominantes", para se tornar fruto de um contrato entre governantes e o povo. Com uma escrita sofisticada, Jaldes Reis nos presenteia com um artigo esclarecedor sobre um dos nossos principais intelectuais marxistas. Intelectual que reintroduziu no Brasil, de forma especial, o importante debate sobre a relação democracia política e socialismo, hoje um tema indispensável para as correntes de inspiração marxista.

Abrindo a parte jurídica está Enoque Feitosa e sua disciplinada defesa da crítica marxista ao Direito. Tal crítica, resgatada dos escritos juvenis e maduros de Marx, consiste no uso sistemático do materialismo para a compreensão do fenômeno jurídico. O Direito seria, assim, simples expressão de uma sociedade de classes, fruto da totalidade social por ele reproduzida e regulador dos conflitos existentes. O Direito nasceria com esta sociedade e, como esta não é eterna, também não seria eterno. O uso do método materialista faz do texto uma análise de combate ao idealismo jurídico; porém, é impossível não perceber traços de economicismo e positivismo. Isso porque há certa desconsideração da autonomia relativa que a superestrutura ganhou nas sociedades modernas, que Marx não chegou a conhecer. Ainda que a produção material influencie de forma significativa a formação do Direito, percebe-se que este também foi capaz de abrir espaços propícios para os caminhos a trilhar até a superação do capitalismo, sem que haja com este uma ruptura abrupta. Além do mais, o autor descarta a possibilidade de o Direito existir em uma futura sociedade sem classes. Não há no ensaio a possibilidade de pensar a existência de conflitos no comunismo, que poderia exigir, assim, uma nova forma de Direito, assim como novas instituições jurídicas.

Já Cláudia Gomes apresenta três abordagens de extração marxista sobre o Direito. Primeiro, com Pachukanis, repete-se a aplicação sistemática do materialismo dialético à composição do Direito. Este seria apenas a superestrutura das relações econômicas características de um sistema que produz socialmente, mas que se apropria de forma privada. O Direito, assim, seria tão somente a regulação desta sociedade dividida em classes com interesses distintos. A tese de Pachukanis polemiza com a de Andrei Vichinsky, ideólogo soviético que desenvolveu a defesa de um Direito socialista, oriundo da ditadura do proletariado e criado contra a exploração dos trabalhadores. Enquanto o primeiro assegura que o Direito é patrimônio burguês, o segundo apresenta a possibilidade de um conteúdo socialista, ainda que, na prática, o Direito soviético não falasse por uma organização social de corte socialista. A grande contribuição do artigo vem com as posições de Gramsci. Mesmo não tendo o teórico sardo desenvolvido reflexões alongadas sobre o Direito, a autora nos traz a original análise de Gramsci sobre a sociedade civil, um espaço privilegiado no qual as superestruturas ganham autonomia relativa e servem como instrumento de conquista da hegemonia, isto é, da direção intelectual e moral da sociedade. O Direito deixaria de ser um simples lugar de controle social e passa a portar a potencialidade para mudanças sociais, desde que sob nova hegemonia. O refinado texto de Cláudia parece ter conseguido, sem se afastar do risco economicista, mostrar uma leitura marxista e histórica do Direito em várias perspectivas.

Por fim, chegamos ao núcleo econômico da obra. Antonio Carneiro de Almeida Júnior analisa as crises capitalistas atuais como crises de caráter financeiro. Recorre a Marx e a sua conhecida abordagem das crises cíclicas do modo de produção capitalista para identificar os atores geradores da crise e a aparência que apresenta. Demonstra que as crises capitalistas são combinações da superprodução de capital em sua diversidade, e, como tais, deve-se buscar a análise total do fenômeno que representam.

Assim como Antonio Carneiro, Nelson Rosas Ribeiro também segue a linha da superprodução de capital como núcleo das crises capitalistas. Faz um balanço destas crises em vários momentos da história, convicto de que todas fazem parte de um movimento cíclico inevitável num modo de produção com contradições, tendo como principal delas a produção coletiva e a apropriação privada.

Concluindo, podemos exaltar o livro como um trabalho valoroso em prol da recuperação da figura de Marx no mundo contemporâneo. Há em todos os autores a preocupação de mostrar que a ideia da morte do marxismo, promovida por seus adversários à luz do fracasso do socialismo real, já não se sustenta nos tempos atuais, haja vista que, dogmatismos à parte, Marx é profundamente capaz de dar as melhores respostas às crises que ora o capitalismo e suas formas políticas apresentam. Não podemos deixar de elogiar o ponto que trouxe unidade a todos os textos, a saber, o esforço de não deixar escapar o vínculo entre marxismo e democracia, um tema que recebeu a correta preocupação dos autores.

É verdade que entre os artigos há diferenças a destacar. O núcleo político apresenta as questões mais interessantes, sobressaindo, por seu conteúdo, em relação aos outros núcleos que compõem a coletânea. Ao tratar de Direito e Economia, os autores foram pouco audaciosos, preferindo expor de forma conservadora o pensamento de Marx sobre os respectivos campos. Ainda assim, este livro tem o mérito de propor publicamente uma reflexão que atualiza Marx e o marxismo da maneira como deve ser, sujeitos ao revisionismo democrático e prontos para receber os devidos ajustes dialéticos na história. Trata-se de um trabalho que serve de exemplo aos que apostam em Marx no nosso tempo, mas, por algum motivo, ainda não abandonaram dogmas e ortodoxias que persistem desde os tempos do mal chamado "marxismo-leninismo".

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Adelson Vidal Alves é professor de História e Pós-Graduado em História Contemporânea.

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Abaixo, os textos que compõem, respectivamente, a quarta-capa e o prefácio de Marxismos na contemporaneidade.

1. Daniel Aarão Reis (Professor Titular de História Contemporânea – UFF) 

O pensamento de Marx sempre foi crítico, revisionista, no melhor sentido da palavra, questionando com veemência e ironia o senso comum e as verdades estabelecidas. Não à-toa, o pensador alemão, em meados do século XIX, foi cercado por um muro de hostilidade.

No entanto, e progressivamente, suas concepções disseminaram-se pela Europa e pelo mundo, e isto aconteceu porque eram incontornáveis, por sua abrangência e profundidade, correspondendo às demandas de análise e compreensão do sistema capitalista. Este, desde então, passara a dominar o mundo da economia, da política e dos valores culturais.

Estruturando-se em partidos políticos, porém, o pensamento de Mars tornou-se "marxismo". Emergiu uma primeira ortodoxia, no âmbito da social-democracia alemã e da Internacional Socialista. O revisionismo, inerente ao pensamento crítico e à investigação científica, tornou-se anátema.

A intolerância ganhou força no contexto do marxismo russo e do comunismo soviético. Potencializaram-se, condicionadas por difíceis circunstâncias históricas, tendências autoritárias latentes. O revisionismo foi caçado e cassado. Oposições viveram dissidências, e aos dissidentes restavam o exílio, a prisão ou a morte.

Entretanto, as ideias de Marx continuaram dançando ao ar do tempo, estimulando pesquisas e incentivando, propondo questionamentos, na contracorrente de repressões vãs, incapazes de compreender que é inútil combater ideias com tiros.

Depois da desagregação da União Soviética e do socialismo "realmente existente", anunciou-se, mais uma vez, a morte do pensamento de Marx. Mas os vaticínios sombrios não se confirmaram nem assustaram novas levas de revisionistas, críticos ao pensamento crítico de Marx.

Uma boa seleção deste revisionismo encontra-se nas páginas deste livro. A recuperação de pensadores malditos, como Kautsky e Lukács, a reflexão sobre o socialismo soviético e seu legado; as crises e os impasses atuais do socialismo e a investigação do Direito e da Política à luz das ideias de Marx. Os textos sobre esses pensadores evidenciam que as ideias de Marx estão bem vivas e que a única forma de mantê-las vivas é através de exercícios críticos. Assim elas nasceram e se afirmaram e só assim poderão continuar a servir de fermento para a construção de um mundo alternativo, livre, democrático e socialista.

2. Marcelo Ridenti (Professor Titular de Sociologia – Unicamp) 

Este livro reúne trabalhos de professores que tratam de aspectos do(s) marxismo(s) na contemporaneidade. Apesar de suas diferenças, eles têm em comum a valorização da democracia para pensar a questão do socialismo. Diferentes tradições marxistas são mobilizadas para analisar o mundo de hoje, bem como as perspectivas de futuro, em seus aspectos econômico, político e jurídico, que são destacados nas partes que compõem a obra.

Nelson Rosas Ribeiro e Antonio Carneiro de Almeida Junior tratam das crises econômicas, vistas de perspectivas marxistas, tema que ganha especial atualidade neste momento em que o capitalismo passa por uma crise em escala global, sem que, no entanto, se configurem, com clareza, alternativas antissistêmicas. Ambos vinculam a crise em curso, que se apresenta sob forma financeira, com as recorrentes crises cíclicas de superprodução de mercadorias e capitais.

Na parte expressamente política da obra, Rubens Pinto Lyra recupera a crítica de Kautsky ao bolchevismo. Retoma o célebre debate com Lenin, a fim de compreender "a débâcle dos regimes estatista-burocráticos" no Leste Europeu. José Antonio Splinelli também faz um balanço crítico da experiência soviética, porém menos desfavorável ao líder da revolução russa, lançando mão sobretudo das tradições marxistas inspiradas em Leon Trotski e Rosa Luxemburg. Por sua vez, Jaldes Reis de Meneses analisa aspectos da contribuição de Carlos Nelson Coutinho, o principal divulgador no Brasil das obras de Lukács e Gramsci, para tratar o tema da "hegemonia como contrato". Por vias diferentes, Lyra, Spinelli e Meneses buscam aproximar os temas do socialismo e da democracia.

A reflexão jurídica ganha espaço nobre na coletânea, em capítulos de Enoque Feitosa e Cláudia Gomes que tratam do direito à luz da obra de Marx e seus seguidores, como Pachukanis, todos críticos das visões liberais. Eles buscam desmistificar a forma jurídica, indissociável da forma mercantil.

O tema do marxismo e do socialismo para o século XXI - que perpassa indiretamente todos os capítulos - é abordado de modo expresso nos textos de Ivo Tonet e de Fernando Magalhães. O primeiro ressalta a atualidade do pensamento de Marx, que vincula o conhecimento à transformação social. O segundo propõe "o renascimento da proposta comunista".

Em suma, o leitor encontrará neste livro contribuições diversificadas e polêmicas sobre temas atuais, inspiradas em diferentes tradições marxistas. E poderá avaliar o alcance dessas tradições, em geral, e dos capítulos da coletânea, em particular, para decifrar os enigmas do mundo de hoje e de sua transformação.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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