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O maracanazo antes da Copa

Luiz Sérgio Henriques - Maio 2014
 

Nessa altura dos acontecimentos, segundo a previsão de quem concebeu a transformação do país e de um sem-número de suas principais cidades em palco de um evento global, como a Copa do Mundo, o clima psicossocial - para usar um termo de tristes tempos, que têm deixado sua marca retórica até mesmo nos discursos presidenciais - deveria ser de festa e celebração. Uma grande corrente pra frente coroaria uma década, ou pouco mais, de êxitos sociais retumbantes e, como decorrência, manteria junto à bandeira de escanteio uma oposição à míngua de propostas e lideranças: uma oposição carcomida, sitiada num gueto "neoliberal", incapaz de compreender um tempo de revolução social, de mobilidade e gestação de novas classes médias, de prosperidade e expansão do consumo privado.

Não faltou quem insinuasse a perenidade da nova ordem ou a projetasse até os fastos de 2022, quando, simbolicamente, o país se daria conta de que sua face cruel e excludente, velha de 500 anos, teria ficado perdida para sempre em algum espelho do passado. A poucas semanas da Copa, porém, todas estas fantasias parecem caducas. Se a sorte da pátria de chuteiras está nos pés de Neimar e companhia, a quem só se pode desejar o êxito das magistrais gerações anteriores de Garrincha, Pelé ou Gerson, há laivos de imprevisto maracanazo na visão que temos de nós mesmos, como sociedade e comunidade política, e na visão que projetamos para os outros, a tal "imagem do Brasil no exterior", para recorrer novamente ao léxico de antanho.

Alguma coisa deu errado na receita da celebração: eis-nos às voltas com o renitente complexo de vira-latas, de rodriguiana memória, chamados a encarar de frente as duras realidades de uma "sociedade incivil". Nesta última, que constitui a trama concreta do cotidiano de milhões de (sub)cidadãos, o que se eterniza é, antes, a precariedade dos serviços públicos e a improvisação das políticas, remendadas por "projetos de impacto", a exemplo da importação de médicos ou paramédicos, como se nesta dimensão - serviços públicos e políticas sociais - não estivesse em jogo um aspecto decisivo da luta hegemônica que deveria ser a preocupação essencial de uma esquerda com vocação dirigente, à moda "ocidental", sem flertes com as "democracias autoritárias" que nos rodeiam. Ou alguém duvida de que um sistema público de saúde, com gestão modelar, modificaria em sentido positivo o modo de vida dos brasileiros, com ampla repercussão na elevação da renda real e mesmo na sociabilidade?

Em vez da luta hegemônica, temos uma política partidária frequentemente mesquinha e permeada de estéril conflituosidade. O grande partido social-democrata, entre nós, dividiu-se em metades inconciliáveis por toda uma época histórica que podemos datar da Constituição de 1988; e a reconciliação das duas metades sequer está à vista.

O primeiro ramo da social-democracia, que de todo modo nos legou o controle do processo inflacionário ainda no governo "peemedebista" de Itamar, operou certamente nas condições de crise do nacional-desenvolvimentismo e de ajuste à impetuosa globalização dos anos 1990, o que teria implicado, em qualquer circunstância, reformas favoráveis ao mercado. Mas, exceção feita a um ou outro de seus expoentes, jamais se penitenciou da confiança desmedida nos mecanismos de mercado que arrastou os social-democratas da chamada terceira via, como o reconheceram Clinton e D’Alema.

Fundamentalmente, comportou-se como uma cabeça sem corpo, um conjunto de personalidades respeitáveis que não logrou lançar raízes e se articular capilarmente com a sociedade, assim desatendendo a um requisito essencial da política de massas, na qual os partidos são "a democracia que se organiza". A húbris - a desmedida - se revelaria ainda na intenção anunciada de permanecer vinte anos à frente do governo, para reformar o Brasil, e na desastrada emenda da reeleição, implantada, ainda por cima, sem os cuidados que levaram a democracia norte-americana a limitar mandatos presidenciais no pós-guerra, mesmo considerando a importância histórica de Roosevelt.

Corpo sem cabeça, ou com uma cabeça majoritariamente atrasada, não obstante o trabalho intelectual que cercou seu nascimento, é como muitas vezes se comporta o segundo ramo da social-democracia. Partido originalmente de massas, com forte enraizamento sindical e laços "orgânicos" com a intelligentsia, que lhe deu uma teoria do Brasil classista e antipopulista, este ramo conhece o descomedimento de forma inversa e simétrica ao primeiro. Suas ações à frente do Estado parecem reciclar vetusto lema revolucionarista: "Temos o governo, ainda não temos o poder". Mas a ocupação do poder não tem - historicamente não pode ter - o sentido de outrora, o da construção de um novo modo de produção e da "transição ao socialismo". Por isso, estiola-se em acordos sem programa mediante os quais, paradoxalmente, se legitima toda a política patrimonialista, desde que as armas estejam apontadas contra a primeira fração - "neoliberal" - do grande partido social-democrata internamente conflagrado.

O travo amargo de maracanazo terá origem nesta política manca, que se reitera a cada rodada eleitoral e afeta violentamente a qualidade do discurso público, alimentando o fanatismo, o sebastianismo e vícios correlatos de secular memória. Não há estratégias de aggiornamento econômico nem de inclusão social que alterem este sentimento de derrota. Até que progredimos um pouquinho, como dizia o poeta da Pauliceia desvairada: afinal, progredir também é uma fatalidade. Mais problemático é saber se temos uma cidadania vibrante, livre de tutela, capaz de dar mais do que o consenso passivo na hora da bonança ou de explodir em fúria impotente na hora das dificuldades.

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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.



Fonte: O Estado de S. Paulo, 26 maio 2014.

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