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Os novos desafios da Embrapa

Zander Navarro e Eliseu Alves - Agosto 2014
 

Provavelmente ninguém discordará que a Embrapa simboliza uma das conquistas mais valiosas da sociedade e do Estado brasileiros. Após quatro décadas, é empresa que tem robusto acervo de conquistas associado à extraordinária transformação produtiva da agropecuária do País, ainda que as regiões rurais continuem marcadas por diversas e contraditórias faces.

De um lado, a agricultura brasileira ostenta a maior produtividade entre todos os países com relevância agrícola. Éramos corriqueiros importadores de feijão quando foi fundada a Embrapa, em 1973, mas atualmente exportamos uma variada cesta de produtos para quase duas centenas de países. Em termos reais, o valor da cesta básica caiu pela metade, assegurando melhores dietas aos brasileiros. Por tudo isso o Brasil, sem dúvida, é e será decisivo ofertante mundial de alimentos nos anos vindouros.

De outro, temos ainda muito a realizar. É provável que 40% dos estabelecimentos rurais não tenham nenhuma chance de permanecer na atividade, pois não conseguem gerar renda superior à que pode ser obtida no trabalho urbano. Convivemos com degradantes indicadores de pobreza rural, especialmente no Nordeste, e em todo o Brasil um terço dos produtores é analfabeto. O seguro rural cobre meros 14% da área plantada, tornando a atividade agrícola cada vez mais arriscada. Esses são alguns dos muitos fatos ameaçadores que talvez expliquem por que o campo se está esvaziando, envelhecendo e masculinizando - em face da generalizada "fuga de mulheres" para as cidades. Igualmente grave é o fato de o emprego rural estar caindo aceleradamente, substituído por mecanização e impulsionado pelas migrações.

Ante o mutante mundo novo que vai transformando as regiões rurais, a Embrapa depara-se com inéditos desafios, ainda sem respostas adequadas. Alguns são fatores externos e outros, injunções nascidas do fato de ser uma empresa estatal. Um desafio imediato decorre da fantástica riqueza atualmente gerada pela agropecuária, que produziu aproximadamente US$ 1 trilhão (exportações nominais) nos últimos 25 anos. Diante dessa fábula monetária, inúmeros agentes privados foram atraídos para os sistemas agroindustriais e passaram a produzir tecnologias para os produtores, complementando ou competindo diretamente com a Embrapa. Essa é uma tendência mundial e, neste contexto, onde e como se reposicionará a empresa pública de pesquisa agrícola? Concorrer diretamente com as firmas é impensável e insensato. Então, o que fazer? Caso não interaja virtuosamente com as empresas privadas ligadas à agropecuária, mantido o interesse público, a Embrapa poderá perder seu lugar como um dos motores da agricultura moderna.

Outra hesitação atual da empresa diz respeito ao modelo tecnológico que promoveu, nesses anos, o impressionante progresso da agropecuária brasileira. Estão se avolumando as ações operadas por ativistas motivados por uma palavra sedutora, porém nunca definida: agroecologia. Tais ações, contudo, são principalmente destinadas a combater a agricultura modernizada. É uma ofensiva incompreensível, pois se trata de um ataque à parte da economia que sustenta o Brasil há tantos anos. Impõe-se a defesa firme e vigorosa dos cânones científicos e da configuração tecnológica orientada para a sustentabilidade, o que vem permitindo ao País alçar-se ao panteão dos maiores produtores de alimentos do mundo.

Um terceiro desafio está apenas nascendo, com a aprovação da Agência Nacional de Extensão Rural e a decorrente confusão entre inovações, pesquisa agrícola e sua transferência aos agricultores, induzindo a Embrapa gradualmente a assumir tarefas relacionadas à assistência técnica, uma das facetas da extensão rural. Há nessa tentativa um risco enorme, ameaçando o riquíssimo histórico de nossa pesquisa agrícola pública. Um fato é inegável: assistência técnica e pesquisa agrícola, quando muito, se complementam. Mas são atividades que exigem especialização e ignorar esse fato redundará em crescente ineficiência.

Internamente, a Embrapa defronta-se com dois desafios. Um deles diz respeito à forte substituição de seus quadros de pesquisadores, renovados por concursos em dois terços nos últimos dez anos. A empresa é atualmente impulsionada por uma geração de jovens pesquisadores com excelente formação acadêmica, mas desvinculados do passado quase épico que constituiu a empresa e a história rural do Brasil no último meio século. É necessário investir numa transição consistente entre as pioneiras gerações de pesquisadores e os jovens que vão chegando, aproximando-os das transformações atuais das regiões de produção agropecuária e, dessa forma, estimulando agendas de pesquisa que sejam coladas às realidades agrárias e produtivas. É tarefa urgente para a empresa. O outro desafio é mantê-la estritamente no campo da ciência. A instituição foi organizada sob o rigor de rituais científicos universais e a interferência de particularismos partidários e interesses políticos representa um perigoso freio no futuro da pesquisa.

Tudo somado, e sem citar outros desafios que mereceriam análise, a Embrapa defronta-se atualmente com uma complexa série de temas que exigem elucidação. Como se reestruturar no novo mundo que vai conformando as regiões rurais? É mudança que sofrerá a influência, como seria inevitável, das disputas eleitorais em curso. Espera-se que os candidatos analisem os obstáculos que precisam ser vencidos pela Embrapa e apoiem os dirigentes da empresa na implantação de difíceis medidas reclamadas pelo novo momento histórico. Se conduzidas por amplo debate e disposição sincera para o diálogo, sem dúvida a Embrapa vai revigorar sua capacidade para situar-se com eficácia ainda maior na nova fase do desenvolvimento agrícola brasileiro.

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Zander Navarro e Eliseu Alves são pesquisadores da Embrapa. Eliseu foi presidente da empresa (1979-1984).

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Fonte: O Estado de S. Paulo, 20 ago. 2014.

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