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Uma nova etapa em Cuba: "¿la alegría ya viene?"

Joan del Alcàzar - Dezembro 2014
 

As declarações sincronizadas de Raúl Castro e Barack Obama abriram uma nova e promissora fase não só no relacionamento tortuoso entre Cuba e os Estados Unidos, mas essencialmente uma nova era para a pequena república do Caribe. Em razão disso, torna-se apropriada, dadas as circunstâncias, uma breve avaliação do processo vivido em Cuba durante o último meio século.

Passaram-se 55 anos desde que um aguerrido e cinematográfico contingente de jovens barbudos irrompeu na história, particularmente na história da América Latina. Deslumbraram o mundo em plena Guerra Fria, em grande medida porque carregavam uma imagem entre desenfadada e heterodoxa, com seus charutos fumegantes, seus uniformes verde-oliva, sem medalhas nem condecorações, e seu aparente ar de bondade. No inicio, pareciam ser simplesmente uns nacionalistas, quase românticos, mas rapidamente o cenário se alterou, e ao poderoso vizinho do norte não restou senão a impactante surpresa quando os soviéticos começaram a aparecer em Havana, primeiro para comprar açúcar e logo depois para instalar mísseis que apontavam para os Estados Unidos.

Depois de meio século daquela vitória dos barbudos, uma parte da sua direção morreu e os que sobraram são agora anciãos que dão mostras de não entender como o mundo mudou, com tanta velocidade, desde que eles tomaram o poder na pequena ilha caribenha. O primeiro secretário do Partido Comunista Cubano (PCC) reconhecia, em 26 de julho de 2009, que, apesar de ser um país agrícola, a terra não produz e que eles se veem obrigados a importar 80% dos alimentos que consomem, enquanto mais da metade das terras do Estado permanece sem ser cultivada. Em sua intervenção, o dirigente subiu o tom e afirmou: "Não é questão de gritar ‘Pátria ou Morte’, ‘Abaixo o imperialismo’, ‘O bloqueio nos agride’, e a terra aí, esperando pelo nosso suor".

A historiadora cubana Marifeli Pérez-Stable escreveu há 15 anos que a revolução social havia terminado em Cuba. O socialismo autóctone havia conseguido acabar, inclusive, com a efervescência popular em seu apoio. As diversas transformações na política econômica fracassaram por sua incapacidade de captar capital estrangeiro e créditos internacionais, assim como pela necessidade de dinamizar uma rede comercial efetiva, tremendamente dificultada pelo embargo norte-americano. Em síntese, quando desapareceram as subvenções soviéticas, a economia da ilha entrou em parafuso.

Em termos econômicos, Cuba é outro planeta, e não apenas porque seus cidadãos usam duas moedas de acordo com o cenário econômico em que se encontrem – o peso e o CUC, equivalente ao dólar norte-americano. A caderneta de racionamento ("la libreta") dá apenas para cobrir duas semanas de alimentação com produtos da cesta básica individual e o salário médio é inferior ao do Haiti, enquanto os preços, "por la libre" (no mercado livre), são equiparáveis aos dos países da área.

Apesar de tudo, o regime se mantém e ainda goza de certa áurea de reconhecimento internacional por ser um país pequeno e valoroso que resiste com dignidade ao assédio imperialista. Entretanto, em nosso entendimento o regime cubano resiste por três razões: (1) o controle férreo, próprio do sistema, que impede quase por completo qualquer possibilidade de dissidência interna efetiva; (2) a colaboração inestimável de Washington que, por razões de política interna, continua mantendo um embargo tão injusto e tão anacrônico que, em última e paradoxal instância, justifica o discurso de resistência intransigente do regime castrista; e (3) externamente, o regime continua mantendo a imagem canônica do anti-imperialismo, e isso lhe garante o respeito.

No exterior não se conhece a realidade a respeito da qualidade de vida da maioria dos cubanos, a real situação econômica do país e a permanente violação dos Direitos Humanos básicos. O regime conseguiu fazer com que sua avaliação, de fora, seja feita muito mais a partir do que o próprio sistema diz de si mesmo do que por aquilo que realmente é. Um êxito inegável.

Na cúpula da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenho (Celac), celebrada em 2014, em Havana, o único ponto de amplo consenso entre os membros da comunidade - apesar da sua diversidade - foi a oposição à política de Washington, que busca isolar e punir Cuba e que é vista como injusta, anacrônica e improdutiva.

A estupidez (e a injustiça) do embargo norte-americano, que prejudica mais as camadas sociais frágeis do que o regime (proporcionando-lhe doses de legitimidade), só pode ser explicada levando-se em conta o problema interno relativo aos efeitos eleitorais no estado da Flórida. É impossível, assim, não condenar essa agressão dos Estados Unidos, assim como hoje não se pode deixar de elogiar a inversão de rota dada por Obama.

No entanto, a obsessão anticubana dos Estados Unidos (injustificável desde o desaparecimento do bloco socialista) não deve oferecer maiores obstáculos para se compreender - pelo menos fora de Cuba - o quanto é obsoleto e injusto o sistema político castrista. Mas sabemos que, dentro da ilha, as coisas são diferentes devido à identificação entre "Pátria" e "Revolução" que acabou por introduzir nas veias de seus habitantes a imagem de Cuba como uma "fortaleza sitiada".

Contudo, será necessário que os diferentes atores políticos envolvidos possam efetivamente tirar proveito da nova era para melhorar tanto a vida material dos cidadãos quanto seus direitos humanos básicos. Esperemos que em breve seja possível que se repita aquele slogan chileno que ficou característico no início do retorno à democracia, em 1988: "la alegría ya viene".

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Joan del Alcàzar é catedrático do Departamento de História Contemporânea da Universidade de Valência (Espanha).

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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