O gênio machadiano, entre outras imagens que se fixaram na alma coletiva, legou-nos a dolorosa noção da impossibilidade de atar as pontas da existência. Mesmo o Natal, com seu intenso conteúdo de comunhão entre religiosos e não religiosos, seria incapaz de restituir, no conhecido soneto, as "sensações da idade antiga": é que haviam mudado irreversivelmente tanto a circunstância natalina quanto o sujeito poético já maduro que a tenta reviver.
Em plano mais prosaico, mas decisivo nesta hora de nossa história, é provável que esteja à vista de todos a mudança dramática das circunstâncias, no fundo impulsionada pelo avanço, em meio a sustos e solavancos, da legalidade democrática instaurada com a Constituição de 1988 - para marcar a data central de "refundação" do Brasil.
A Carta de 1988, e não a chegada ao poder de qualquer uma das partes polÃticas, é o marco zero que nos dá régua e compasso, com a exigência rigorosa de comportamento democrático-republicano, com o conjunto de normas que requerem a mudança dos atores, de sua presença na arena pública, de suas relações recÃprocas.
As circunstâncias tornaram-se mais dramáticas em momento inesperado, quando, pelo voto, renovaram-se o mandato da presidente, de governadores e parlamentares. De fato, nada lembra o perÃodo de graça que se concede a governantes novos - ou reconfirmados -, os tais "cem dias" nos quais o mandatário se mexe com desenvoltura, em meio a relativa distensão do ambiente. Normalmente, a própria oposição ensarilha as armas ou busca reposicionar-se com cautela, reconhecendo à parte vitoriosa a iniciativa do jogo.
Este perÃodo de esperança, porém, está visivelmente abalado: a ele se substituem o temor das crises que se somam e o pressentimento da incapacidade, especialmente por parte do governo federal, de enfrentá-las em sentido positivo. A economia parece exaurida, depois de surfar - irresponsavelmente - no ciclo de prosperidade made in China da primeira década do século. Ainda exibe joias de valor, como o mercado de trabalho aquecido e o aumento do salário-mÃnimo, mas o consenso é que tais joias logo perderão o viço, ausente a variável decisiva do investimento público e privado.
A polÃtica, como sempre, é o terreno minado por excelência. Acumulam-se aqui as consequências menos positivas do modo ser do sujeito central da vida brasileira - o então poderoso partido de esquerda cuja vitória, em 2002, marcou o completamento da democracia previsto na Constituição e cuja atuação, à s vésperas do quarto mandato presidencial seguido, já contabiliza o arriscado resultado a que se pode chegar quando se opera, em condições "ocidentais", com categorias de repertório antigo, essencialmente inadequado para promover as mudanças que a retórica agressiva afirma perseguir.
A verdade é que, desde 2003, temos tido sucessivos exemplos da predominância de tal repertório envelhecido. Um fato paradoxal, de vez que, na economia, pelo menos o primeiro perÃodo presidencial do ciclo petista fez concessões à ortodoxia, cuidando de manter essencialmente intocadas as metas de superavit e o controle da inflação nos termos propostos pelo governo anterior, ainda que o bombardeio retórico não tenha abandonado, por oportunismo, o refrão da "herança maldita" e da contraposição frontal com um inimigo cuidadosamente construÃdo.
Ainda agora, na situação de dificuldade das contas públicas e do limite alcançado pelo experimento "keynesiano", a presidente da República move-se no sentido de restaurar, em linhas gerais, o arranjo do primeiro governo Lula, passando por cima de apregoado apego ao nacional-desenvolvimentismo. Deixando de lado qualquer avaliação deste movimento, o fato é que nada disso se repete na polÃtica. Seja por atavismo das lutas sindicais, terreno propÃcio à linguagem de um corporativismo radicalizado, mas pré-polÃtico, seja por influência distante, mas renitente, da raiz de extrema-esquerda, o petismo opera, por princÃpio e sistema, com a lógica da demonização do adversário, nisso muito próximo de seus meios-irmãos do "populismo" latino-americano.
A recente campanha eleitoral reavivou todas as feridas, conduzida, como foi, pela ideia de "desconstrução", sofisticado conceito pós-moderno que se degradou à condição de desabrido marketing negativo contra os "inimigos do povo". E, na sequência da campanha, a crise que ameaça se abater com força sobre todo o sistema polÃtico em decorrência da ação de instituições autônomas da República - e com consequências que não sabemos prever - ainda não encontrou resposta minimamente adequada. Ao contrário, nas palavras de um de nossos últimos "grandes velhos", o bravo Pedro Simon, "Dilma e o PT declararam guerra à oposição. Ela, que se diz coração valente, não teve peito de chamar, nem por educação, Aécio ou Marina para uma tentativa de entendimento".
Mais do que promotora da conciliação na frente econômica, é evidente que a presidente Dilma deve se reinventar, nos termos do discurso de vitória, como ator livre de sombras e amarras, afastando-se da lógica de "partilha" do governo e, muito particularmente, abrindo-se para o entendimento com os adversários em busca de consenso para uma reforma polÃtica sem aventuras, mas efetiva, e a defesa da estabilização possÃvel do sistema partidário sob risco de implosão.
O velho Machado duvidava de um reencontro pleno do sujeito consigo mesmo através da intrincada máquina da memória. O bruxo do Cosme Velho escrevia em profundo plano existencial. Em vez disso, a polÃtica permite que o sujeito - desde que minimamente afeito à convivência civilizada - se ponha à altura das circunstâncias e ache bom ancoradouro, apesar de condições adversas.
Mero desejo talvez incendiado pela época propÃcia?
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.