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A esquerda e os quinze anos da transição

Luiz Werneck Vianna - Fevereiro 2000
 

A história da coalizão política que se impôs contra o regime militar e a sua forma autoritária de Estado pode ser descrita como o resultado da inédita associação, no país, dos temas e personagens da democracia política com os da democracia social. Ou, em outras palavras, da liberdade com a igualdade. Entretanto, pode-se igualmente constatar, sobretudo a partir de 1982, quando as forças que se opunham ao regime autoritário conquistaram os governos estaduais de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, que os seus êxitos, longe de confirmarem aquela associação, já traziam em si o que a levaria à erosão. Desse modo, antes mesmo que se pudesse dar por concluída a sua obra, a coalizão que resistira ao autoritarismo e indicara os rumos para a sua superação conheceria o rompimento.

A separação entre as dinâmicas da liberdade e da igualdade não decorreu de um processo fortuito, podendo ser explicada a partir de um conjunto complexo de mudanças desencadeadas, ainda sob o regime autoritário, no campo das idéias, na estrutura social e na orientação dos movimentos sociais, principalmente naqueles de organização recente, originários das próprias transformações introduzidas pelo ciclo de modernização capitalista que tomou forma no pós-64.

No campo das idéias, a grande transformação incidiu sobre a percepção do Estado e da esfera pública no país, que, tidos como estratégicos à modernização e à democratização brasileiras desde a Revolução de 30, passaram a ser vistos como obstáculos ao livre desenvolvimento da sociedade, e, muito especialmente, como lugares institucionais da reprodução dos padrões hierárquicos e socialmente iníquos predominantes em nossa história. Essa nova interpretação do Brasil, gestada no momento mais repressivo do regime autoritário –– os anos 70 ––, encontrou a sua matriz intelectual na recepção da obra weberiana em alguns círculos acadêmicos, projetando-se, a partir daí, na ação de personalidades e grupamentos de esquerda.

As diferentes versões dessa interpretação, em alguns casos de motivação radicalmente distinta, tinham em comum a mesma e forte prescrição para o enfrentamento da malaise brasileira: liberar o interesse da jurisdição política do Estado, fazendo dele e da sua livre manifestação o eixo regenerador da sociedade e de suas instituições políticas. Não por acaso, na bibliografia produzida com essa inspiração, o estado de São Paulo é apresentado, tanto pelo campo liberal, como pelo democrático-radical, como o portador potencial de um novo paradigma –– centrado, para uns, na representação e na cooptação, para outros, na classe e não no povo ––, que, ao se afirmar, encerraria o longo período de supremacia do Estado sobre a sociedade civil.

As versões dessa interpretação do Brasil conheceram, em fins dos anos 60 e no decorrer da década seguinte, duas grandes expressões: as que tomaram o Estado como seu ponto de partida, vendo nele o portador da herança patrimonial portuguesa e, como tal, a raiz do atraso brasileiro; e as que, alternativamente, identificaram nas dinâmicas societais decorrentes do exclusivo agrário a vigência do patrimonialismo. Em ambas, como se vê, a categoria patrimonialismo se impunha como a chave explicativa do atraso brasileiro e da forma particular de combinação entre atraso e moderno que teria presidido a modernização burguesa autoritária.

Assim, em que pesem as diferenças entre essas interpretações, desde logo ressaltadas pela escolha do ponto de partida –– o Estado, em uma, a sociedade, na outra ––, o seu diagnóstico sobre a patologia da modernização brasileira encontrava um mesmo veio explicativo: a subordinação do interesse das classes sociais a uma esfera pública, tida como isolada, contraposta à sociedade civil e orientada, em última análise, para o favorecimento do interesse próprio das elites que a controlavam. Tal diagnóstico, diga-se de passagem, via a sua capacidade persuasiva reforçada em virtude da natureza das relações estabelecidas entre o Estado e a sociedade civil no contexto do regime militar, tomadas, assim, como uma conseqüência da má formação histórica do país.

Democratizar o Brasil, então, implicaria um movimento de ruptura com a sua história, liberando o interesse e as agências especializadas na sua representação –– sindicatos e partidos políticos –– de suas articulações com o Estado, considerado o maior responsável pela situação de heteronomia das classes sociais, tendo, inclusive, sob a forma de dominação populista, convertido a classe operária em um "personagem estatal". O populismo, em particular quando exercido sob uma roupagem nacional-popular, consistiria, pois, em um recurso político das elites dominantes, destinado a subordinar a agenda do sindicalismo operário aos seus próprios fins, isto é, à modernização da ordem burguesa, desconsiderando a pauta de reivindicações que lhe seria constitutiva e impedindo a classe operária de se tornar sujeito da sua própria história. Dessa perspectiva, a autonomia da classe operária dependeria da construção de uma identidade a partir dos seus interesses, por fora de alianças com classes ou frações de classes dominantes e com o "seu" Estado. Para o operariado, o acesso à esfera pública deveria suceder a uma vigorosa acumulação de forças, sendo decorrente de um ato de conquista e não de alianças pluriclassistas, em um movimento de baixo para cima, nascido do terreno livre da sociedade civil. Em outras palavras, a política do movimento operário e sindical deveria consistir em uma derivação da sua "sociologia", sobretudo da sua forma de inscrição no espaço fabril.

É, então, com base nessas premissas, que se inaugura uma revisão das interpretações sobre a formação do Brasil moderno, tendo como um dos seus principais alvos a desqualificação do papel republicano do movimento operário e sindical no período 1946-1964, basicamente centrado na afirmação da precedência do interesse público sobre o privado. O seu republicanismo, que o teria levado a promover alianças com setores das elites em prol da industrialização do país, não somente seria responsável pelo desastre de 1964, como também explicaria a situação de heteronomia prevalecente na condição social dos seres subalternos. Assim como a adesão ao sistema de orientação republicano explicaria a derrota do movimento democrático-popular, pois o enredara nas malhas da dominação burguesa sob o regime do nacional-populismo, a liberação do interesse autenticamente classista deveria ser a base fundacional de uma ação emancipadora dos setores subalternos.

Em meados também dos anos 70, coincidente, portanto, com essa alteração no acervo interpretativo sobre a história recente do país, a vida social começava a apresentar algumas mudanças, com a emergência de novos movimentos organizados, em particular aqueles originários do ciclo de industrialização provocado pela implantação do parque automobilístico na região do ABC, em São Paulo. Dali sairá o "novo sindicalismo", nascido de uma indústria privada multinacional e de um contexto inteiramente distinto do que prevalecia no início dos anos 60, sem conhecer, portanto, uma exposição efetiva à agenda republicana. Descontínuo, do ponto de vista de sua extração social e política, em relação ao sindicalismo anterior, cuja melhor representação se fazia nas empresas estatais, o "novo sindicalismo", a exemplo da "nova interpretação" sobre a formação brasileira, surge também em oposição à história de alianças operárias e à noção, até então prevalecente, de que as razões da política deveriam estar presentes na manifestação do seu interesse. Seu mundo é o do mercado, da fábrica, da negociação sobre salário e condições de trabalho, e não o da república.

São esses dois movimentos independentes entre si –– procedentes, um, das concepções ideais e, o outro, dos movimentos sociais ––, gerados, contudo, sob a mesma circunstância histórica, que, malgrado as suas diferentes inspirações e motivações, conhecerão, na passagem da década de 70 à seguinte, uma via de explicitação das suas fortes afinidades eletivas, instituindo a dimensão do interesse como a chave para a democratização do país. Como dimensão intrinsecamente emancipadora, o interesse não deveria estar submetido a outras formas de razão, como a da política. Ademais, sendo ele a expressão, por excelência, do social e dos imperativos para a formação de uma consciência popular autônoma, a condição para que viesse a operar a regeneração de uma sociedade autocrática e desigual como a brasileira residiria na radicalidade, sem freios, da sua manifestação.

Abre-se, então, a partir daí, uma conjuntura marcada pela progressiva dissociação entre operadores políticos e sociais. Enquanto a política da transição realizava um largo movimento de notação republicana, procurando condicionar a agenda da democracia social à jurisdição da razão e do cálculo propriamente políticos, no plano da intervenção social a comunhão da intelligentsia com os movimentos organizados ampliava a influência de um outro sistema de orientação. Sob essa lógica dúplice e contraditória, quanto mais avançava o processo de transição, maior a fratura no campo das forças democráticas, levando a que, na sucessão presidencial de 1989, elas se apresentassem cindidas –– a democracia política representada pela candidatura de Ulysses Guimarães; a democracia social, pela de Luiz Inácio Lula da Silva. Foi essa cisão que possibilitou a vitória eleitoral de Collor, quando, então, o governo passou ao controle de personagens, classes e frações de classes não somente beneficiários da política do antigo regime, como também responsáveis, em boa medida, por sua sustentação social.

O melancólico desenlace da sucessão presidencial de 1989, reiterado nas duas sucessões seguintes, tornou evidente que a dissociação entre a democracia política e a democracia social fazia da primeira um institucionalismo sem substância e condenava a segunda, em que pese a força da sua vocalização, ao isolamento político. Tal dissociação resultava, em última análise, da convicção de que a efetiva democratização do país implicava o abandono da transição em prol da estratégia da ruptura. A perspectiva da ruptura, fortalecida a partir dos anos 80, não consistia, na verdade, em um movimento sem vínculos com a história da resistência ao regime militar. De certo modo, naquele novo cenário, com outros personagens sociais –– embora algumas lideranças políticas e membros da intelligentsia fossem os mesmos –– ela reavivava a contraposição entre a estratégia da derrota e a da derrubada, que dividira a esquerda logo após o golpe militar. Daí que se possa sustentar que, desde então, como agora, os sucessos recentes da transição brasileira para a democracia sugerem, como essencial, a questão do sistema de orientação do ator.

À esquerda, como notório, a estratégia da derrota foi difundida, desde inícios do regime militar, pelo PCB, tendo encontrado a sua expressão mais geral na mobilização do inventário político do Ocidente, em especial as liberdades civis e públicas e as instituições da democracia representativa. Em razão disso, consistia em uma orientação que visava, preferencialmente, atingir os setores mais modernos da estrutura social e os estados mais desenvolvidos da Federação. Assim, diante da clássica disjuntiva que animava as controvérsias da esquerda, sobre as vantagens do moderno e as vantagens do atraso, a sua nítida opção era pelas primeiras, enquanto a alternativa que se opunha a ela, especialmente porque tinha a expectativa de uma mobilização revolucionária do campesinato, manifestava a sua preferência pelas últimas.

De um ponto de vista analítico, a estratégia da derrota se fundamentava no diagnóstico do caráter dúplice do regime autoritário, que combinaria uma forma de domínio autocrático expresso nos Atos Institucionais com a que resultava da preservação, ao menos como fachada e instrumento de legitimação democrática, da ordem racional-legal. Entendendo que tal ambigüidade seria intrínseca àquele tipo de regime autoritário, a estratégia da derrota se aplicava em fortalecer a dimensão "constitucional" remanescente, a fim de isolar e, depois, cancelar a dimensão "institucional" do regime. O risco da operação residia na possibilidade de que tal estratégia viesse a confirmar os esforços de legitimação do regime militar, permitindo-lhe o exercício da mais brutal coerção sob o disfarce protetor das instituições da democracia representativa. Evitá-lo, implicava uma forte e crescente associação da agenda da democracia política com a da questão social, como se dera em 1974, levando, pela primeira vez, a oposição democrática à vitória eleitoral na disputa majoritária por cadeiras no Senado. Datam daí o aprofundamento das relações do centro político com a esquerda, a incorporação da grande intelectualidade paulista e do "novo sindicalismo" do ABC à estratégia da derrota e a confirmação da importância do caminho eleitoral como forma de luta contra o regime autoritário, superando, largamente, a prática da anulação do voto, exitosa nas eleições de 1970.

No campo da esquerda, o resultado eleitoral de 1974 consagrou a supremacia do sistema de orientação da derrota sobre o da derrubada, opção que trazia consigo uma série de desdobramentos, nem sempre antecipados pelos atores envolvidos, inclusive entre aqueles que mais se empenharam na sua formulação e prática. É que aprofundar a estratégia da derrota significava admitir uma passagem para a democracia que não implicava, necessariamente, um momento forte e agonístico de ruptura com o antigo regime –– o que na linguagem da esquerda significava aderir à via da reforma em desfavor da revolução. Para a esquerda, portanto, assumir o caminho da transição importava transformações na sua identidade e em sua trajetória tradicional, passando a se identificar plenamente com os valores e as instituições da democracia –– compreendida aí a tradição liberal ––, a recusar antigas antinomias –– entre igualdade formal e igualdade real, por exemplo –– e a pôr sob o mesmo estatuto os valores da liberdade e da igualdade.

Daí que, para ela, a transição importava um afastamento do modelo clássico de revolução, dominado pelo tema da quebra do aparelho do Estado, reclamando uma revisão dos seus conceitos, valores, sistema de orientação e modos de compreender a história do país, de forma a erigir a democracia, suas instituições e procedimentos em um caminho permanente de mudança social. Nesse sentido, é inegável que a transição significasse admitir uma solução de transformismo, uma vez que, por definição, importava negar uma via de ruptura como condição para a institucionalização da democracia no país. Caberia ao ator identificado com o processo da transição alterar o registro da solução transformista, imprimindo nela, por meio da sua atividade como um "político realista e não [como] um apóstolo iluminado", para se usar palavras de Gramsci em suas análises sobre o Risorgimento, uma dinâmica em que a mudança se impusesse sobre a conservação.

Nessas condições, assumir a política da transição, e não apenas se ligar a ela por um cálculo político de valor contingente, pressupunha uma mudança na forma de agir e na própria identidade do ator, caso não quisesse se encontrar como estrangeiro à sua própria criação e incapaz de continuar agindo positivamente sobre ela, como viria a ocorrer com o PCB. Ser homólogo ao processo a que dera curso importava, pois, acompanhar, inclusive no terreno da teoria, o que era próprio dele, como, por exemplo, as drásticas mutações por que passava o campo semântico da esquerda, evidenciadas no progressivo abandono da categoria classe em favor da categoria cidadão.

O caso do PCB é ilustrativo, dado que foi, entre as forças da esquerda, o maior responsável pela afirmação da estratégia da derrota. Contudo, esse seu êxito político na história da resistência ao autoritarismo não evitou, à medida que a democratização avançava, a sua conversão em um partido minoritário na esquerda, destituído de bases na vida popular, e, fato inédito na sua trajetória, no movimento operário e sindical. Com efeito, se se leva em conta a natureza da sua identidade tradicional, sua filiação ao cânon da ortodoxia soviética, com suas concepções verticalizadoras e a noção teológica de um "centro único", nada poderia ser mais ameaçador do que o aggiornamento à conjuntura da transição, ininteligível, de resto, sem a sua participação.

Daí que, quando se tornam manifestas as não-homologias entre a prática que efetivamente exercia, a sua velha teoria e sua identidade de grupo, o PCB começa a interpretar a transição como uma variante tática, e não como uma política de longa duração, destinada simplesmente a devolver ao país as condições da liberdade democrática. Ameaçado pela sua própria criatura, o PCB passará a viver, a partir dos anos 80, uma lógica dual e contraditória: de um lado, sem denunciar o caminho da transição, não pretende se credenciar à sua direção, abandonando-se a ele como a um fluxo regido pela providência; de outro, inicia um movimento de restauração da sua identidade, um regresso ao pré-64, que sintomaticamente tende a relativizar a questão democrática, básica à eficácia política de uma esquerda que reconhecesse como atraente a via da transição. Com isso, compromete a sua capacidade de interpretar os emergentes movimentos sociais e perde sintonia com os temas libertários da cultura política que vêm à luz com o processo de democratização.

O 7º Congresso do PCB, convocado em maio de 1981 para deliberar sobre o documento intitulado Teses para um Debate Nacional de Comunistas pela Legalidade do PCB, consiste na melhor ilustração do espírito de regresso, então dominante em sua direção. A volta das liberdades, que se esperava para breve, e a história de lutas que se associava a elas, não seriam abordadas da perspectiva da mudança de concepções e de rumos, mas de uma restauração longamente esperada. Nessa linha, o documento da direção do PCB, sem contar o equívoco das previsões, não necessariamente inócuas quanto à formulação das Teses, como as de que "o aumento do prestígio internacional dos países socialistas, a redução acelerada da influência dos Estados Unidos [estariam] provocando um rápido declínio da burguesia imperialista no mundo" (Seção I, Tese 6), se limitava a reapresentar as suas concepções de revolução nacional-popular. A Tese 23, verdadeira regressão aos anos 60, ao pretender expor a natureza da contradição fundamental entre o povo e o imperialismo, chega a sustentar, abstraindo os 17 anos de modernização burguesa autoritária pelos quais o país ainda atravessava, que "na etapa atual da revolução brasileira e da transição ao socialismo, ao setor estatal da economia está reservado um importante papel, ampliado pela incorporação de outros setores fundamentais subtraídos ao imperialismo. Ele exercerá a função de núcleo mais dinâmico e acelerador da economia e facilitará a transição ao socialismo através do caminho do desenvolvimento independente, democrático e progressista"(Seção 2, Tese 23).

É, pois, o cânon identitário que aprisiona o PCB em sua própria história, protegendo-o da sua política, mesmo quando ela se mostra bem sucedida, como no caso da que levou o país ao caminho da transição. Fixado em suas lealdades, internas e externas, o PCB assiste ao curso da transição indiferente ao movimento do mundo, sem se dar de conta que a base da sua sustentação –– o movimento operário e sindical –– já se desprendera, definitivamente, da sua influência. Dessa falta de comunicação entre um processo –– a abertura, a transição –– e o principal ator que, à esquerda, presidiu a sua animação, sairá o resultado paradoxal de que serão personagens e grupos políticos originários da estratégia da derrubada a quem se confiará a missão de protagonizar a transição e a quem ocorrerá uma progressiva adaptação à sua natureza –– movimento ainda em curso, mas já portador de conquistas promissoras, como a revalorização, ainda que tímida, do tema republicano e da democracia como estratégia para a mudança social.

Como notório, foi o PT, entre as forças da esquerda, quem melhor se aproveitou da via da transição, fazendo do processo eleitoral, como antes o fizera o PCB, a sua forma principal de luta e de acumulação de forças, a ponto de, hoje, exercer o governo em três estados da Federação e em 110 municípios, entre os quais duas capitais, contando, ainda, com uma expressiva bancada de deputados e senadores. Contudo, ao longo da década de 80 e até meados dos anos 90, esse partido se comportou como um hóspede do processo da transição, visando romper com ele e não dirigi-lo. Daí a sua recusa, naquele contexto, em estabelecer alianças, o seu afastamento do Centro político e a sua preferência pela agenda do social em detrimento da republicana.

Hostil à transição, o PT se apresentava como melhor intérprete dos novos movimentos sociais e da cultura política que vinham à tona com a democratização do país –– com o que encontrava legitimação para seguir buscando uma solução de ruptura. Assim é que, desamparado da esquerda que o concebeu e daquela que nasceu do seu próprio interior, o processo da transição vai contar apenas com o suporte do Centro político, a essa altura reduzido ao mero discurso institucional, sem representação no mundo dos interesses, inclusive dos empresários, que já procuravam se desvencilhar do peso histórico da esfera pública em suas atividades. Mais à frente, em 1988, mal concluídos os trabalhos da Assembléia Constituinte, o Centro político em nada mais lembra o que havia sido no limiar da transição.

Aberta a sucessão presidencial de 1989, quando os partidos de esquerda apresentaram candidaturas próprias, o candidato do Centro, Ulysses Guimarães, principal nome dos liberais da tradição republicana, se vê reduzido a 6% dos votos, e, em que pese o bom desempenho eleitoral da esquerda, a direita vence com Collor, imprimindo um desfecho inesperado para a transição. A ruptura não vinha, pois, pela esquerda, mas pelo lado oposto. O discurso de posse de Collor, em 15 de março de 1990, uma orgulhosa declaração de princípios do ideário neoliberal, significava que o coroamento da transição teria como seu momento conclusivo uma clara ruptura com a tradição republicana e com o tipo de valorização da esfera pública que ela representava. A transição que, na interpretação da direita, até então se limitara à reconquista da liberdade política, teria chegado, afinal, ao seu término, com a instauração da "mais ampla e efetiva liberdade econômica" que seu governo viria a implementar.

Desde aí, a categoria ruptura passa a ser a palavra-chave da direita. Já eleito, às vésperas de assumir a presidência da república, Fernando Henrique Cardoso, em seu discurso de despedida do Senado, em linha de continuidade com aquela declaração de Collor, decretava o fim da era Vargas. Nesses dois momentos a mesma intenção: o processo de transição se fecharia com a primazia do privado sobre o público, dissociado, de vez, do seu impulso original, onde esteve presente a tentativa de combinar os ideais da democracia política com os da democracia social.

Conquistado o Poder Executivo, a direita deixa claro que a transição era, ainda, um processo em curso, denunciando como ilusória a crença de tantos de que, com a promulgação da Carta de 1988, ela teria conhecido o seu ato de conclusão. Concluí-la, de fato, dependia da ação do Executivo, agora sob seu controle, da qual deveria resultar a reforma do Estado, a liberação do mercado de constrangimentos externos à sua lógica e, muito especialmente, a reforma da Constituição, por meio de uma intervenção permanente que a tornasse compatível com o que seria o caráter real do desenlace da transição. Resulta disso que é a própria direita quem põe em evidência o caráter inacabado da transição, contrapondo à Carta de 1988, com suas instituições enraizadas na tradição republicana e na valorização da esfera pública, uma reforma aplicada em fazer da sociedade refém da sua política macroeconômica.

Nesse contexto, levar adiante a reforma neoliberal importava, pois, derruir a ordem constitucional; defendê-la significava retornar à idéia de república, sobre a qual ela se assentava. Tem sido dessa resistência, nesses quase 10 anos de um Executivo empenhado na realização do ideário do neoliberalismo –– salvo o interregno Itamar Franco ––, que a esquerda, a partir do seu aprendizado de hoje, começa a rever a sua própria história no período da transição. Enfrentar, nas lutas práticas e em teoria, a poderosa coalizão que vem sustentando a reforma neoliberal, além de levar a esquerda à revalorização do tema republicano e da questão nacional, tem-lhe demonstrado a importância das alianças, principalmente com o Centro político, com tudo o que ele representa em termos de continuidade da preservação do papel da esfera pública como lugar de promoção do desenvolvimento e da proteção social. Nessa longa transição, ela começa, afinal, a se tornar o ator que sempre lhe faltou, sobretudo à medida que, quebrando com antigas identidades, internaliza a democracia como via para a mudança social e opõe à reforma neoliberal um projeto de república, cuja marca somente pode ser a da inclusão de todos que jamais fizeram parte dela.

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Luiz Werneck Vianna é professor do Iuperj.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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