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A alma turva do populismo

Luiz Sérgio Henriques - Abril 2015
 

Em breves dez anos - sob a égide de governos federais petistas -, nossas instituições viram-se seriamente confrontadas, por duas vezes, com desafios provenientes de ações do grupo partidário dominante. O primeiro deles, que deu origem à Ação Penal 470, julgada pelo STF, desaguou na condenação de políticos marcantes na esquerda brasileira, ou em parte dela, certamente a que mais se identifica com a "geração de 1968", sem falar nos participantes dos chamados núcleos financeiro e publicitário ainda em regime de prisão fechada.

Há aspectos que se reiteram no segundo desafio em curso de investigação na primeira instância judicial, que logo mobilizará também o STF, foro específico para os detentores de mandato. Uma reiteração incômoda, que desgraçadamente permite supor a existência de algo mais do que os problemas de financiamento dos partidos numa democracia de massas - problemas que não tiveram boa solução em lugar algum, independentemente das tradições de cada país, de seu sistema eleitoral ou regime de governo.

O incômodo maior nasce deste ponto nevrálgico. Longe de serem "só" casos de financiamento ilegal ou de recursos não contabilizados, para recorrer ao dicionário da novilíngua, estas situações repetidas em tempo breve, e até em parte sobrepostas, indicam a intenção de turvar a democracia ou mesmo o início de sua deterioração, ao se buscar emperrar o mecanismo essencial da alternância. Há casos historicamente reconhecidos de "democracias bloqueadas", e não por acaso a Operação Lava-Jato faz recordar a operação italiana das Mãos Limpas, com que se desmontou o sistema de poder democrata-cristão que por décadas associou partidos menores, empresas públicas e privadas, máfias e outros centros clandestinos de riqueza e influência.

Neste caso, obviamente, tal sistema tinha uma orientação de direita ou de centro-direita, denominação mais adequada a uma formação, como a DC, de sólida implantação popular, abrindo-se para setores moderados da esquerda, como o PSI, mas excluindo definitivamente o antigo PCI. No Brasil, ao contrário, o bloqueio do sistema beneficiaria um partido de esquerda, ainda que só com muita obtusidade ideológica - propriedade, aliás, muito bem distribuída por todo o leque político - se deva admitir a existência de um "socialismo petista" ou de qualquer coisa aparentada com socialismo ou comunismo.

Também referências recorrentes, além desse contexto italiano, têm sido os diferentes populismos latino-americanos, como o PRI mexicano até há alguns anos ou o Partido Justicialista argentino, que se prolonga no kirchnerismo. Menos do que um projeto de governo - progressista e reformador -, teríamos, com o petismo, um projeto de poder, segundo diagnóstico que se generalizou mesmo em dissidências radicais do PT. A identificação com Vargas, bizarra pirueta para quem acompanha este partido desde os primórdios, poderia ter como objetivo mais ou menos consciente "importar" o que Vicente Palermo, agudo analista da situação argentina, chama de heterogeneidade das almas da democracia em seu país: a alma democrático-liberal e a democrático-populista (La Nación, 2 jan. 2015).

Segundo esta análise, a primeira implica a ideia de uma comunidade constitutivamente plural, que possibilita uma cultura dos direitos, o governo das leis e das instituições, bem como a discussão constante dos limites do poder. Ideias do acervo liberal, decerto, mas às quais não pode ser alheio nenhum projeto de transformação, mesmo e especialmente os que tenham atores de inspiração socialista ou marxista. Não pode haver dúvida, por exemplo, de que a liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente, fórmula incisiva de uma revolucionária do século XX que, no entanto, não vigorou em nenhuma das sociedades do que se chamou de "socialismo realmente existente" - Cuba e China incluídas.

A segunda alma, democrático-populista, entende o princípio majoritário de forma peculiar: ele se encarnaria em determinada facção e, mais radicalmente, na figura do líder. Uma dialética capenga pela qual a nação se identifica com a eventual maioria, que, por sua vez, se deixa capturar pelo carisma: o líder e o demos, considerado de modo indistinto, ocupam toda a cena ou querem ocupá-la. Não há espaço para o jogo das instituições. Encara-se com crescente intolerância o tema do controle sobre o poder, tendencialmente concentrado e discricionário. E a ação do ator dotado deste tipo de alma será sempre de natureza hegemônica no sentido negativo do termo: coopta-se e subordina-se tudo aquilo que tem a ousadia de nascer fora de sua jurisdição, asfixiando tendencialmente cultura, política e sociedade civil.

No drama brasileiro de 2005, quando, a partir de um episódio de suborno nos Correios, dados em sesmaria a um dos parceiros subalternos da aliança de governo, desatou-se o processo do "mensalão", afinal entendido, na esfera judicial, como grave atentado à república democrática, vozes oposicionistas influentes foram decisivas em deter a proposta do impeachment. Era forte, além de toda discussão, o simbolismo da figura do primeiro presidente operário, que, impedido, poderia se tornar um Vargas redivivo, a assombrar os mecanismos do Estado Democrático de Direito, abrindo entre nós o dissídio de almas que Palermo diz ser congênito à democracia argentina.

Na instável situação de agora, as forças responsáveis devem se orientar com o mesmo sentido coerentemente unitário de república: e é uma lástima que esta tarefa, por motivos óbvios, não possa ser assumida pelo principal partido da esquerda nem agora nem em futuro previsível, na ausência de um processo rigoroso de crítica e autocrítica. Cedo ou tarde, haveremos todos de pagar um preço por isso.

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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.



Fonte: O Estado de S. Paulo, 19 abr. 2015.

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