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A Uerj e o ovo da serpente

Luiz Eduardo Soares - Junho 2015
 

Mesmo afastado da Uerj, me angustia profundamente o que está acontecendo na instituição, à qual tanto devemos, à qual tanto deve a democracia no Brasil. Sou professor universitário há 40 anos. Comecei, com carteira assinada, em janeiro de 1976. Tornei-me docente da Uerj em 1991, há 24 anos. Tenho muito orgulho da imensa maioria dos alunos de ciências sociais e considero um privilégio ser colega de meus colegas e conviver com um grupo extraordinário de funcionários dedicados, competentes e cooperativos. A Uerj esteve à frente de seu tempo, assumindo políticas afirmativas, adotando cotas para negros, aceitando registrar travestis, e quem se sentisse estigmatizado, pelo nome que escolhessem. Com o ingresso de cotistas, o ambiente da universidade melhorou muito, a experiência acadêmica enriqueceu-se, qualificou-se, valorizou-se. Eu senti que meu trabalho cotidiano ganhara um sentido renovado e recarregava baterias ao encontrar @s estudantes. A primeira geração a chegar à universidade não veio à vida a passeio. Seriedade e entusiasmo com os estudos e as descobertas impuseram a nós, docentes, um grau superior de saudável exigência intelectual e profissional. Não por acaso, inaugurou-se o Centro de Ciências Sociais, antiga reivindicação de quem sonha com o aperfeiçoamento acadêmico em nossa área. Fui honrado com o convite dos colegas para falar na mesa de abertura, semana passada. Preparo agora minha retirada: uma licença-prêmio - à qual tinha direito havia bastante tempo, mas jamais solicitara - e, na sequência, a aposentadoria. Pois justamente neste momento, enfrentamos desafios extremos que colocam em risco a convivência acadêmica, civil e pessoal, e a própria instituição.

Por tudo isso, com tristeza e desapontamento, considero que tenho o dever de me pronunciar. Como professor há bastante tempo, como ex-coordenador da pós, no ano em que formulamos nosso projeto de criação do doutoramento (projeto que foi aprovado), como simples membro de uma comunidade com a qual compartilhei o cotidiano por décadas, como cidadão, intelectual, militante dos direitos humanos, como indivíduo. Eis o que gostaria de dizer:

Nem sempre o quebra-quebra é vandalismo. Em minha luta pelos direitos humanos na segurança pública, testemunhei inúmeras situações em que representantes do Estado assassinaram inocentes, nas favelas e periferias. O discurso oficial abençoava a barbárie institucionalizada do modo mais torpe, covarde e cínico. Em várias ocasiões, o desespero, a dor e o sentimento de impotência de familiares e vizinhos, ante a tragédia dupla, material e moral, derramaram-se sobre o asfalto, sob a forma de gritos, choro e as mais diversas explosões de ódio. A coreografia selvagem da fúria popular só poderia ser desqualificada como vandalismo por quem, à distância, não tinha a menor ideia do que se passara ali, não tinha a mínima noção do que significa viver por anos, por décadas, assistindo ao massacre continuado e impiedoso de jovens negros e pobres, moradores de territórios vulneráveis. Desprezar a manifestação orgânica, visceral do desespero, coletivo ou individual, revela a mais grotesca insensibilidade e corresponde à adoção de uma postura cúmplice da brutalidade que vitimiza as comunidades. Em vez de se horrorizar com o assassinato arbitrário de um ser humano, em lugar de denunciar mais uma execução extrajudicial, o crítico da reação popular feroz focaliza, unilateralmente, a resposta, relegando a segundo plano o coração das trevas, o ato criminoso original.

Não se trata de avaliar a revolta explosiva como método de luta por direitos ou como tática política, nem mesmo como estratagema de comunicação, porque ela não é nada disso. Ela é o pranto incontido da mãe ante a suprema violência que se abateu sobre seu filho, contagiando uma comunidade no momento culminante do sofrimento e na ausência de canais institucionais por onde fazer fluir a indignação e o clamor por justiça. Ela é a linguagem do desamparo mais radical, na falta de instrumentos políticos disponíveis e acessíveis, que metabolizassem a dor e a convertessem em pressão efetiva por mudança real. Por isso, nada mais abjeto, a meu ver, do que a desqualificação das manifestações de dor de uma coletividade aviltada de modo cruel e extremo.

Nas mobilizações de junho de 2013, sabemos bastante bem quão violentas e arbitrárias foram tantas ações policiais. Portanto, era compreensível a explosão de revolta dos que se sentiam injustiçados, justificadamente. Classificar como vandalismo, de modo uniforme, homogêneo e generalizado as reações furiosas de muitos manifestantes, quando confrontados de forma ilegal e ilegítima por aparatos armados do Estado, sempre me pareceu absurdo, insustentável. O ódio encontra o vocabulário possível quando o nervo é pinçado. O movimento de um lado a outro é visceral, não é pensado, escolhido a partir de um repertório de técnicas e táticas. Entretanto, como vimos, na sequência das semanas e dos meses, o gesto cheio de paixão do jovem manifestante, organicamente vinculado, como resposta, a um ato cheio de fúria armada de agentes estatais, deixou de existir. Esse gesto por assim dizer natural e compreensível, na gestalt maior da cena, foi substituído pela violência como técnica e tática de ação política, ou pretensamente política. Foi trocado por uma linguagem, o quebra-quebra, pensada, estudada, decidida e aplicada de acordo com um certo plano a implementar. O gesto passional deu lugar à linguagem da violência. Adotou-se, especularmente, mimeticamente, a dramaturgia do Outro, do adversário, do suposto inimigo. Manifestantes e policiais violentos transformaram-se em espelhos uns dos outros. As práticas que se desejava criticar foram assimiladas e reproduzidas, invertendo-se somente o alvo. Instaurou-se uma linha de continuidade, tornando mutuamente substituíveis os atores: a linguagem era uma só, o vocabulário, o mesmo. Em outras palavras, a violência racionalizou-se como política, autonomizou-se da cadeia visceral das paixões, experienciadas em sua singularidade, desprendeu-se da esfera dos afetos e da espontaneidade. Enquanto plano consciente, enquanto intervenção política, a famigerada ação direta era apenas uma estupidez, uma insensatez tão negativa e contraproducente que os adeptos de teorias conspiratórias formularam os piores juízos a respeito da sinceridade de seus postulantes. E, por isso, evidentemente, houve infiltrações dos que queriam ver o circo pegar fogo: para empanar o brilho de junho de 2013 e condenar todo e qualquer ativismo cidadão, democrático e espontâneo, ou para atingir este ou aquele governante.

A partir do momento em que violência deixou de ser resposta passional - a demandar compreensão - para transfigurar-se em técnica de ação política - a demandar crítica e repúdio -, autoridades aproveitaram-se para acusar, metonimicamente, qualquer manifestação, sugerindo à opinião pública que a parte era o todo. Ao denunciar o vandalismo dos grupos minoritários, buscava-se desqualificar o conjunto das mobilizações, um dos fenômenos sociopolíticos mais importantes de nossa história. Nada colaborou mais para o sucesso desta "operação metonímica" do que @s ativistas que seguiram repetindo e reencenando a tragédia como farsa, até que a farsa voltou a ser tragédia, e em escala superior, com a morte absurda e dramática do cinegrafista Santiago.

Isolados por sua própria inexcedível insensibilidade, por sua soberba, por sua embaraçosa incapacidade de enxergar a complexidade do mundo, acuados pela desproporção de números e meios, vocacionados ao gueto por sua arrogância elitista, vanguardista e autoritária, os grupos adeptos da ação direta como tática fizeram mal ao ativismo, aos processos de mudança e a si próprios. Claro que, neste ofício, fazer mal a si mesmos, contaram com a contribuição fundamental das autoridades judiciais, policiais e políticas, e de boa parte da mídia, que não mediram esforços para persegui-los, prendê-los e os estigmatizar, inventando soluções engenhosas, as mais arbitrárias. A desmedida com que os poderes instituídos se arrogaram o papel de justiceiros, abriu espaço para que uma ampla coalizão democrática se articulasse, em nome das garantias constitucionais, visando defender aqueles cujos direitos estavam sendo violados por diferentes braços do Estado. Contudo, os grupos adeptos da ação direta desprezaram esta chance para redefinir sua inserção no imaginário popular e no universo político, renunciando à dramaturgia pobre, previsível e mimética da violência. Abdicaram da oportunidade de assumir sua identidade no campo democrático, isto é, postulando ideias sem a pretensão de impô-las. Pelo contrário, desprezaram apoios e alianças, porque não concordavam com os princípios em nome dos quais se lhes oferecia solidariedade. Sem valorizar a diversidade ideológica e política, sem respeitar o pluralismo, sem conferir legitimidade aos interlocutores que não lhes fossem espelhos, daquele momento em diante, os donos da verdade caminhariam sozinhos, sobraçando paus, pedras e seus dogmas, de volta ao gueto, rumo a seu eclipse.

Rumo a seu eclipse, a não ser que pudessem saltar de volta ao centro do palco, aproveitando-se de brechas e contradições. Isso aconteceu. Está acontecendo. No Brasil, no Rio, não faltam lutas sociais justas, em torno de legítimas reivindicações. Embarcar nelas para tentar dirigi-las, não pelas ideias, mas pela força, não é tarefa simples. Os movimentos estão amadurecendo. Rejeitarão manipulações e chantagens. Mesmo a irrupção oportunista e surpreendente, em meio a manifestações massivas, já encontrará anticorpos. Ativistas populares de extração democrática não são ingênuos. Sabem com quem contar e de quem devem manter distância: aprenderam a identificar quem pode levá-los ao isolamento político e à derrota. A intervenção dos grupos adeptos da ação direta em uma manifestação específica prejudicaria de imediato a própria manifestação, até mesmo por atrair a repressão policial, que tende a abater-se sobre o conjunto da mobilização. Os militantes democráticos têm plena consciência desta realidade e se esforçarão por defender-se da infiltração dos referidos grupos.

Por todos esses motivos, a brecha mais acessível aos grupos adeptos da ação direta é o movimento estudantil. Afinal, as autoridades universitárias dignas deste nome se recusarão a chamar as polícias para atuar nos campi. Além disso, suas palavras de ordem revolucionárias sobrepor-se-ão a outras tantas de mesmo matiz, enunciadas por outros grupos, criando uma atmosfera na qual as diferenças tenderão a, na aparência, diluir-se. Tudo o que ocorrer será transferido, injustamente, para a conta do movimento estudantil, em sua generalidade. Ao fim e ao cabo, tudo conflui para uma situação bastante simples: tomar o poder pela força, adotando a dramaturgia bélica e a linguagem coreográfica e verbal da violência, só é viável se o teatro de operações forem as universidades e se entendermos a expressão "tomar o poder" como sinônimo de ocupar fisicamente o espaço, desalojando os "outros", quaisquer que sejam. Este poder não vale nada, positivamente, mas vale muito pela visibilidade midiática que proporciona e pela eficácia obstaculizadora (uma tradução livre para "spoiling power"). A consequência é a chantagem sobre o conjunto da comunidade acadêmica, não apenas sobre as autoridades universitárias. Caso algum reitor se desespere e convoque a polícia, os chantagistas arrogantes, autoritários e violentos transformam-se em vítimas, num passe de mágica, e passam a merecer a solidariedade de um espectro amplo de agências políticas democráticas, que os salvaria do isolamento e lhes devolveria protagonismo.

Como sair deste dilema? O que fazer? Em primeiro lugar, não copiar a cópia que esses grupos fizeram da repressão policial. Ou seja, não agir como eles, não recorrer à violência. Em segundo lugar, creio necessário e urgente mobilizar a comunidade acadêmica em torno de princípios democráticos, em cujo âmbito participação é imprescindível na vida social e na vida universitária, e não se confunde com violência, pelo contrário, afirma-se como sua negação. Mobilizar toda a comunidade acadêmica, estudantes, professores, pesquisadores e funcionários, e todas as entidades democráticas da sociedade civil, porque a universidade pública não é uma ilha, e se tem sido, está na hora de deixar de ser - este pode ser um ganho inesperado do drama atual. Mobilizar com o objetivo de pactuar condições para o convívio universitário. Só o isolamento político garantirá o recuo dos grupos autoritários e violentos aos limites de sua real significação política e os fará respeitar a imensa maioria para merecer respeito e alcançar legitimidade, se desejam agir politicamente numa sociedade que aspira ao aprofudamento da democracia.

Hoje, há muita poeira no ar. Intelectuais, estudantes, observadores externos, militantes de partidos políticos olham para a Uerj e veem, ou ouvem, reivindicações justas e estudantes se manifestando, enfrentando jatos d’água e se confrontando com seguranças da instituição, enquanto vidros são estilhaçados. As cenas são conhecidas. Rapidamente, o que se vê é projetado contra o pano de fundo das grandes manifestações, onde a polícia foi algoz. Decodifica-se num instante: o reitor é o poder, será, portanto, provavelmente, a fonte da hostilidade à democracia, o grande autor ausente da repressão. Os estudantes, em seu conjunto, serão as vítimas. O resultado da interpretação é previsível: quem não vocifera contra os poderes constituídos da Uerj é conservador e não apoia as reivindicações, ou é insensível aos pleitos dos terceirizados. Quem age é corajoso, é impelido pela virtude cívica, luta pelos oprimidos e contra os poderes opressores. Afinal, as palavras de ordem se parecem, os cânticos revolucionários evocam imagens análogas, tudo leva a crer que reina a unidade no universo estudantil e a bipolaridade maniqueista. O quadro não é este. Há muitas vozes críticas do reitor, e duramente críticas, que repelem a violência, entre alunos e professores, e a iniciativa na adoção da linguagem da violência tem sido da responsabilidade dos grupos adeptos da chamada ação direta. Claro que, ao adotar a violência vão se defrontar com seguranças da universidade, que não estão armados, mas que se defenderão e tentarão impedir depredações. Confrontos serão inevitáveis. Mas a iniciativa política violenta tem sido claramente assumida pelos grupos adeptos da ação direta.

Por isso, chego às seguintes conclusões: o ovo da serpente instalou-se entre nós. Nada pode ser mais urgente e necessário do que defender a universidade e a participação cidadã, livre de medos, seja do medo da polícia brutal, seja do medo dos grupos que se autoproclamam representantes de todo o povo, portadores da verdade revolucionária, que ignoram a diversidade e desrespeitam a alteridade. Classificar esses grupos como "de esquerda" conspurcaria qualquer ideia benigna e virtuosa que se pudesse formular sobre o que seja "esquerda". Pessoalmente, os vejo como expressões da extrema-direita. Mas o problema não é taxinômico. Categorias não importam. Importa compreender o que está em jogo.

Antes de discutir as reivindicações de estudantes, professores ou funcionários, por mais justas que sejam, compete a quem compreende a gravidade deste quadro posicionar-se com firmeza e coragem contra a violência como meio de ação política, isto é, como técnica, tática ou método. Cumpre mobilizar a imensa maioria da comunidade acadêmica que preza o respeito à diferença e os meios democráticos de ação política e de participação. A maioria precisa sair do armário, descer do muro, clarear a vista, exorcizar as ambiguidades. Não é possível conciliar, tergiversar ou aliar-se, em benefício de lutas corporativas tópicas, aos que atacam os pilares do convívio democrático. Não pode haver na universidade o cerceamento da palavra pela brutalidade, nem o veto ao funcionamento institucional pela vontade autoritária de uma minoria que pretende monopolizar a verdade. A Uerj tem mil e um problemas. Os terceirizados, por exemplo, quando sofreram os inadmissíveis atrasos de pagamento, mereceriam, como defendi publicamente, solidariedade ativa, que se efetivasse por todos os meios de luta possíveis. Entre estes meios não figura a violência. O que está acontecendo de mais grave na Uerj é a imposição da vontade de alguns pela força, é a disseminação do medo, é a desqualificação do diálogo e da negociação, é a destruição da própria ideia de universidade.

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Luiz Eduardo Soares é antropólogo.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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