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O Chile de Lagos: o desafio do novo curso democrático

Alberto Aggio - 2000
 

A superação dos regimes autoritários que se instalaram em alguns países latino-americanos entre as décadas de 1960 e 1970 não se processou por meio de revoluções ou insurreições político-sociais. A forma pela qual aqueles regimes foram ultrapassados foi, regra geral, por meio de transições que levaram aqueles países a vivenciarem a passagem de situações de autoritarismo para situações de democracia. Conforme a já clássica caracterização de G. O´Donnell, tais processos de transição obedeceram a pelo menos duas lógicas: em alguns casos ocorreram por colapso dos regimes autoritários; em outros por pactos ou negociações entre regime e oposição. Enquanto a Argentina pode ser citada como um caso exemplar da primeira, Chile e Brasil, cada um por meio de razões que lhe foram próprias, são, seguramente, exemplos emblemáticos da segunda.

Para se compreender plenamente a situação política do Chile atual, depois da vitória e da tomada de posse do terceiro governo dirigido pela Concertación de los Partidos por la Democracia, ocorridas no início de 2000, seria importante uma breve análise do processo de transição à democracia vivenciado no Chile, uma vez que o tipo de transição que ali se impôs configura-se como o fator explicativo mais importante das muitas dificuldades que se colocaram aos atores democráticos que lutaram contra o regime autoritário e também dos diversos problemas que assolam a democracia chilena nos dias atuais.

O regime militar comandado por Augusto Pinochet, imposto ao país após o sangrento golpe de Estado de 1973, somente foi derrotado politicamente depois do fracasso de diversas estratégias que postulavam um combate frontal contra a ditadura. Dentre estas estratégias encontram-se as tentativas de ação armada contra o regime – e mesmo contra sua representação máxima, ou seja, o próprio ditador – e também as diversas tentativas de mobilização de massas contra a ditadura que ficaram conhecidas como as protestas [1]. Em ambas as estratégias acalentava-se a idéia de que era possível derrubar a ditadura de Pinochet como resultado de um ato ou de um movimento de força. Ao final de 1986, tornou-se absolutamente clara a impossibilidade de se derrubar a ditadura quer pela via armada quer pela via da luta social de massas, que havia mobilizado ativamente diversos setores sociais populares nos três anos anteriores.

Um dos elementos fundamentais que garantiu legitimidade interna e apoio social das elites ao regime autoritário, além da personalização do poder na figura de Pinochet e da orientação econômica neoliberal, foi o seu projeto de institucionalização política expresso na Carta Constitucional de 1980. Este projeto delineado normativamente garantia o prosseguimento do regime autoritário mediante um plebiscito previsto para 1988, no qual se projetava a continuidade dos traços personalistas e institucionais do regime militar. No plebiscito de 1988, seria decidida a manutenção de Pinochet por um novo período de oito anos. Foi em torno da possibilidade de se politizar em favor da oposição o plebiscito de 1988 que foi se constituindo na sociedade chilena a crença de que se poderia derrotar politicamente a ditadura militar.

Dotada de uma condução multipartidária representada pelo Comando por el NO, a oposição política a Pinochet foi capaz de derrotar o autoritarismo, adaptando-se às regras do jogo por ele impostas [2]. Em função dos resultados eleitorais, sobejamente conhecidos, é possível interpretar de duas maneiras o revés eleitoral sofrido por Pinochet em 1988. Ele interditou a pretensão da ditadura de se projetar para o futuro e, em segundo lugar, desencadeou um processo de transição à democracia que iria se desenrolar dentro dos prazos e mecanismos que, em geral, haviam sido estabelecidos pelo regime.

Entretanto, o desencadeamento da transição se deu com Pinochet no centro do poder político, exercendo, em toda a plenitude, sua dupla função de Presidente da República e de Chefe das Forças Armadas. A aceitação do cronograma constitucional por parte da oposição significou que Pinochet pôde governar mais um ano e meio, sem nenhum contrapeso. Meses antes da entrega do poder, seus assessores conseguiram confeccionar um pacto decisivo com seus opositores, já àquela altura agrupados na multipartidária Concertación de los Partidos por la Democracia. Consumado tal acordo e referendado majoritariamente num novo plebiscito, em 31 de julho de 1989, evidenciou-se de maneira cabal que se cristalizariam, sob o risco de perdurarem ad eternum, uma série de territórios reservados, concebidos para bloquear, sem transgredir a legalidade, qualquer iniciativa reformista em matéria política que se propusesse desmontar a arquitetura básica do ordenamento jurídico-constitucional autoritário. Desta forma, a derrota eleitoral sofrida no plebiscito de 1988, seria convertida, assim, numa vitória política estratégica em 1989, uma vez que se aprovaram somente reformas superficiais na Constituição de 1980 [3].

A aceitação de mudanças constitucionais que, no fundo, condenavam a oposição a uma posição defensiva, implicou objetivamente a legitimação daquilo que se passou a definir como enclaves autoritários [4]. Esta expressão refere-se explicitamente a elementos que pertencem, por definição, ao regime autoritário e que perduram na experiência democrática que o sucede, impedindo que esta se transforme numa democracia política completa. Trata-se, assim, de uma intervenção direta por parte do regime precedente na expressão da soberania popular ou de alterações provocadas na vida democrática desejada pelo país, e que continuam vigentes mesmo depois de se ter vivenciado e vencido o mais pesado da transição. Em outras palavras, são problemas ou tarefas pendentes da transição que devem ser enfrentadas num contexto de ordem política pós-autoritária e que limitam o caráter plenamente democrático desta.

Três são os tipos de enclaves autoritários, cuja existência ou força relativa depende do ponto de partida e do tipo de transição. Em primeiro lugar, o institucional, isto é, os elementos normativos, constitucionais e legislativos que impedem ou limitam o exercício da vontade popular, o princípio de representação e o governo efetivo das maiorias, ou mantêm as prerrogativas das Forças Armadas acima do poder político civil (senadores designados e vitalícios; Lei Eleitoral; composição e atribuições do Conselho de Segurança Nacional; composição e atribuições do Tribunal Constitucional; inamovibilidade dos comandantes-em-chefe das Forças Armadas, etc.). Em segundo lugar, o enclave ético-simbólico, que consiste na permanência ou reiteração dos efeitos das violações dos direitos humanos sobre o conjunto da sociedade em contextos de ditaduras militares ou em situações de luta armada ou de guerra civil. No caso chileno, explicita-se institucionalmente uma dificuldade adicional em função das leis de anistia (1978) ou da incapacidade dos poderes judiciais de fazer justiça. Em terceiro lugar, o enclave na dimensão dos sujeitos políticos. Trata-se de pessoas ou grupos que se constituem como atores sociais que, ao invés de se definirem em termos de presente ou futuro democráticos, buscam projetar e adequar as circunstâncias de regime democrático aos princípios e orientações da ditadura precedente; num certo sentido, estas pessoas ou grupos vão impregnando de ecos do passado os novos mecanismos de perfil democrático que se instalam ou procuram manter a luta pelo poder através de confrontações que podem ser inclusive militares ou simplesmente extra-institucionais.

Comparando-se às experiências de transição à democracia dos demais países latino-americanos do chamado Cone Sul, podemos anotar aqui que o Chile apresentava, no início da década de 1990, uma tríplice particularidade: em primeiro lugar, não herdava uma crise econômica do período anterior, uma vez que a mudança fundamental de modelo econômico e seus respectivos custos haviam sido realizadas sob o regime militar; em segundo lugar, tratava-se do único caso em que a maioria do bloco de oposição à ditadura se conforma como uma coalizão de partidos de governo ao iniciar-se a fase democrática; e, em terceiro lugar, as duas vantagens anteriores se encontrariam contraditadas pela profundidade e extensão dos enclaves autoritários, o que estabelece o seguinte paradoxo: no Chile se dá uma das transições mais incompletas convivendo simultaneamente com um novo regime bastante consolidado.

Neste sentido, a transição à democracia no Chile talvez seja o maior exemplo de um processo político que, quanto mais avança, mais se distancia de seu impulso originário e substantivo. Em outros termos, quanto mais avança a transição, mais se vê cancelado o processo de democratização, entendido como aprofundamento e expansão da participação, ao mesmo tempo que se cristaliza a impossibilidade de qualquer reforma na estrutura de representação política da cidadania. Em suma, a transição democrática no Chile expressaria fortemente o paradoxo de ser um processo de paralisia da democracia enquanto movimento e renovação da vida político-institucional.

Uma breve revisão da trajetória dos governos democráticos instalados a partir de 1990, depois de suprimida a continuidade política do autoritarismo, elucidaria melhor as dificuldades de implantação de um processo de consolidação democrática no Chile. Como se sabe, o governo de Patricio Aylwin (1990-1994) recebeu um país transformado, dotado de um dinamismo econômico ascendente mas com um Estado pródigo em enclaves autoritários, restringindo a ação governamental e autolimitando o governo em sua capacidade reformadora.

Iniciada a década de 1990, o chamado modelo chileno (um capitalismo quase sem regulações, apoiado num Estado autoritário que se sustenta em mecanismos institucionais conservadores) experimentaria uma dupla correção sob a primeira administração democrática. Por um lado, em consonância com a perspectiva de um "crescimento econômico com equidade social", o governo se dispôs a reduzir, o mais rápido possível, o tamanho da pobreza, mas sem modificar a desigual distribuição de renda. Por outro lado, com a ajuda da ala mais liberal da oposição, iniciou-se uma governabilidade sustentada na necessidade de se fundar um amplo consenso, suficiente para superar uma história recente saturada de violentos conflitos e ásperas disputas; um consenso que, entre outras dimensões vinculadas a ele, justificou o estabelecimento de uma trégua social que converteu em virtualmente ilegítimo todo e qualquer sinal de reivindicacionismo ascendente que viesse da base social com o objetivo de atingir o Estado.

Ao mesmo tempo que se ia resolvendo, paulatinamente, a tensão entre governo e empresariado, a urgente necessidade de se alcançar um status quo não conflitivo com os militares convenceu tanto a administração Aylwin como o conglomerado de partidos que o apoiava a obter um rápido e durável entendimento com o mais preponderante dos poderes fácticos presentes no cenário político. Apesar da expedita reciprocidade governo-classe política ou governo-Igreja Católica ser sensivelmente inferior àquela conseguida com as Forças Armadas, a convergência de critérios de avaliação entre ambos os atores foi se configurando num discurso comum, inclinado a materializar um projeto de "modernização com crescimento" em vez de um projeto de "desenvolvimento com democratização".

Desta forma, em virtude da impossibilidade de contar com os votos dos parlamentares da ala mais liberal da direita política do país, o programa democratizador da agenda governamental seria substituído por um outro programa que transformaria o governo num zeloso guardião dos equilíbrios macroeconômicos. A partir daí, a administração Aylwin assumiu um papel politicamente defensivo, dilapidando o capital político alcançado em seu "período de graça". A opção escolhida, embora tivesse tornado prontamente inviável qualquer retrocesso autoritário, não colocou em prática, por exemplo, a desejada subordinação militar ao poder civil.

Depois de 1994, uma parte das tendências anteriormente mencionadas experimentariam um forte aprofundamento. Em consonância com a idéia geral que havia se estabelecido na formação política governante, a agenda política que organizou a presidência de Eduardo Frei apostou, desde o começo, numa mudança de perspectiva: da "lógica da transição" teria que se passar à "lógica da modernização". Fiel a suas convicções, o novo governo privilegiou, com grande tenacidade, o processo de modernização econômico-social em detrimento de qualquer outra dimensão da vida nacional.

Como era previsível, durante todo o período, os resultados eleitorais alcançados pela coalizão de governo em eleições legislativas (em 1993, 55,39% dos votos e, em 1997, 50,54%) não lhe permitiram aumentar seu número de parlamentares de modo a alcançar os diversos quóruns para realizar reformas políticas e constitucionais que permitissem acabar com os enclaves autoritários, especialmente com os senadores designados. Tal situação se viu agravada pela incorporação de Pinochet ao Senado como parlamentar vitalício. Diante deste quadro, a Concertación de los Partidos por la Democracia e também o governo de Frei ficaram sem estratégia para superar tais enclaves. A sensação predominante se afirmaria, assim, nos termos da impossibilidade de uma reforma democrática, quer porque ela havia sido bloqueada, quer porque ela havia fracassado.

A diminuição na votação concertacionista experimentada nas eleições parlamentares de 1997, a discussão e a tensão internas em função da acusação constitucional e, sobretudo, da detenção de Pinochet, e mais a questão da democratização e reconciliação bloqueadas, tudo isso gerou dúvidas a respeito da capacidade de sustentação da aliança de governo. Apesar das restritas vitórias políticas e dos diversos êxitos socioeconômicos dos governos da Concertación, o mal-estar dos cidadãos alcançou um ponto culminante entre 1998 e 1999, alimentado pelo impacto da crise asiática e pela instalação de um sentimento de mal-estar que se cristalizava em função da sensação de frustração devido à persistência dos enclaves autoritários, da exacerbação das desigualdades sociais (ainda que haja uma diminuição da pobreza estatística), da falta de uma nova definição para o papel dirigente do Estado e das instituições que fortaleçam os atores sociais, a cidadania e a sociedade civil.

É com este cenário que se abre a campanha eleitoral de 1999/2000 para a Presidência da República, protagonizada respectivamente por Ricardo Lagos e Joaquín Lavín. O primeiro, representando a Concertación de los Partidos por la Democracia, coalizão de centro-esquerda que governa o Chile desde o início da década de 1990. O segundo, um ex-colaborador do regime militar que conseguiu a proeza de unificar os partidos da direita chilena (Unión Democrática Independiente e Renovación Nacional) e ao mesmo tempo mantê-los distantes do comando de sua campanha, além de evitar que a sombra da figura do ex-ditador causasse algum dano a sua estratégia eleitoral.

Os dois candidatos terminaram o primeiro turno praticamente empatados. Lagos chegou em primeiro, garantindo uma vitória matemática, por pequeníssima margem, sem evitar, contudo, a "vitória simbólica" de Lavín por este ter conseguido levar a decisão para o segundo turno. Os elementos da polarização que se haviam instituído desde o primeiro turno mantiveram-se presentes até o final. No segundo turno, por pouco mais de 170 mil votos, Lagos venceu, definindo a distância entre os dois candidatos em torno de 2,62% do eleitorado.

O Chile já havia conhecido eleições tão ou mais polarizadas que esta. Em 1938, o candidato da Frente Popular, Pedro Aguirre Cerda, as venceu por uma diferença de 4 mil votos; em 1958, Jorge Alessandri, um candidato conservador, venceu, por menos de 30 mil votos, o socialista Salvador Allende; e, em 1970, seria Allende que ultrapassaria o mesmo Alessandri por pouco mais de 36 mil votos. Depois de 1973, as eleições foram canceladas para voltarem somente após o plebiscito de 1988. Mais recentemente, dez anos depois que assumiu o primeiro presidente eleito pela Concertación, esta é a primeira vez que se decidiu uma eleição presidencial em dois turnos, inovação estabelecida pela Constituição de 1980 para superar a histórica divisão em três terços da política chilena.

Alguns fatores explicam tanto a polarização estabelecida quanto o resultado que acabou se impondo. Diferentemente das eleições anteriores vencidas pela Concertación (1989 e 1994), nas quais havia prosperidade econômica, otimismo e até mesmo euforia com os índices de crescimento, a eleição de 16 de janeiro de 2000, ao contrário, se desenrolou num clima de incerteza econômica em função do crack que se abateu sobre os "tigres asiáticos", países com os quais o Chile desenvolve uma significativa relação comercial. Os desdobramentos desta crise produziram recessão e desemprego desde o início de 1998, afetando o prestígio do governo e da candidatura Lagos. Por outro lado, a detenção de Pinochet em Londres fez ressurgir internamente a polarização entre esquerda e direita, além de recolocar no centro da cena política a temática dos direitos humanos, um dos principais déficits da transição chilena. As debilidades do governo Frei para enfrentar com eficácia esses problemas e um certo cansaço depois de dez anos de governos concertacionistas alimentaram, como dissemos acima, um complexo sentimento de mal-estar que afetou negativamente a candidatura oficialista.

Desta forma, Lagos conseguiu vencer o primeiro turno enfrentando uma situação bastante adversa para um candidato oficial. Ele o conseguiu por suas inegáveis qualidades como liderança política e também porque a Concertación manteve-se unida, mesmo depois da mudança de hegemonia na indicação do candidato presidencial – Aylwin e Frei vieram da Democracia Cristã enquanto Lagos provém do mundo socialista. Venceu também porque uma parcela significativa do voto da esquerda comunista ainda existente no Chile – a parte minoritária e mais saudosista dos tempos da Unidade Popular –, que lhe havia faltado para que Lagos pudesse ter vencido no primeiro turno, veio se somar, no segundo turno, a muitos eleitores que não haviam acorrido às urnas para garantir a vitória ao candidato da Concertación.

Por outro lado, Joaquín Lavín acabou figurando, nesta eleição, como o principal protagonista da direita chilena, deslocando deste lugar a figura de Pinochet. Isso se expressou tanto na sua estratégia eleitoral quanto nos princípios fundamentais que adotou e que lhe resultaram muito favoráveis. Lavín conseguiu realizar a façanha de se afastar de Pinochet sem perder o apoio do pinochetismo; capturou para si a imagem da mudança, apresentando-se como uma nova liderança – "moderna" e pragmática, um "político não-político", um novo "produto" no mercado eleitoral [5]. Unificando a direita, Lavín conseguiu uma votação maior do que a de Pinochet no plebiscito de 1988 e passou a se apresentar como a liderança de direita mais qualificada para dar a este setor uma orientaçao para o futuro. Com Lavín, o neoliberalismo quer construir uma homologia entre os fundamentos da economia de livre mercado e a cultura política da democracia. Nesta construção, a política perderia sua clássica função de representação, mais afeita a ideologias, valores e programas, para se transformar numa resposta direta e permanente ao cidadão-consumidor – este "novo ser" que exige respostas concretas e imediatas pelo que "paga". A expressiva votação de Lavín demonstra que o "liberalismo real" que deu sustentação ao chamado modelo chileno ainda seduz boa parte da sociedade chilena.

De toda forma, a vitória de Lagos e a sua posse no início de 2000 mantiveram viva a Concertación como aliança política de centro-esquerda e como uma coalizão governante com grande capacidade de se renovar. Além disso, pela disputa eleitoral extremamente renhida, mostrou o reconhecimento da maioria do país para com uma aliança de partidos que representa, neste terreno, a obra política mais significativa que os chilenos produziram no século XX. Por outro lado, a difícil tarefa de instituir, enquanto governo, um movimento renovador no interior da continuidade define a complexidade e os limites daquilo que já se começa a chamar de uma "segunda transição".

As forças democráticas que sustentam o governo Lagos sabem que têm diante de si o desafio de enfrentar de forma séria e responsável as pendências da transição negociada à chilena. Lagos terá principalmente que convocar o país para a imperiosa necessidade de se buscar uma saída diferente do "ultracapitalismo" imposto ao país desde a queda de Allende. Mas, para isso, certamente não colocará em risco o equilibrio macroeconômico. Neste aspecto, o novo governo se propõe aprofundar a dimensão social do que já fizeram os governos anteriores da Concertación. Mas, em campanha, Lagos evidenciou que tem perfeita clareza de que a inércia já não basta para recolocar o país em movimento.

O Chile volta a ser, assim, uma das referências importantes da mudança política na América Latina. No governo, Lagos poderá recuperar um processo de democratização que se extraviou e deixou muitas de suas tarefas pelo caminho. Ele sabe que no plano institucional as demandas da sociedade são bastante radicais no sentido do aprofundamento da democracia. Sua principal proposta nesta direção é a elaboração de uma nova ordem constitucional para o país, com o fim da autonomia militar frente ao poder representativo. Desta forma, é, mais uma vez no terreno da política que uma reforma ativa de revalorização pública e institucional da democracia está sendo proposta no Chile. Um grande desafio para um pequeno mas sempre instigante país.

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Alberto Aggio é professor de História da Universidade Estadual Paulista, em Franca, São Paulo.

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Notas

[1] Cf. Fredrigo, Fabiana de Souza. "Ditadura e resistência no Chile. Da democracia desejada à transição possível (1973-1989)". Franca: Unesp, 1998 (Série Estudos, n. 3).

[2] Para a análise da transição chilena utilizamo-nos aqui de Aggio, A. & Cáceres, G., "Chile: processo político e controvérsias intelectuais". Lua Nova, n. 49, São Paulo, Cedec, 2000, p. 87-111. Neste ensaio, muitas dimensões da transição chilena são detalhadamente analisadas e discutidas.

[3] A idéia de derrota tática e vitória estratégica está em Moulian, T. "Limitaciones de la transición a la democracia en Chile". Proposiciones, n. 25, Santiago, 1994, p. 34-45.

(4) Cf. GARRETÓN, M. A La posibilidad democrática en Chile. Santiago: Flacso, Cuadernos de Difusión, 1989.

[5] Cf. TIRONI, E. La irrupción de las masas y el malestar de las elites – Chile en el cambio de siglo. Santiago: Grijalbo, 1999, p. 200.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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