Instigado pelos vários comentários publicados nas redes sociais, assisti à longa entrevista de Dilma Rousseff ao Programa Jô Soares do dia 12 de junho.
Não penso que presidentes, jornalistas, analistas polÃticos e artistas sejam estranhos entre si, não façam coisas em conjunto, não troquem favores ou não se deem as mãos. Ocorre o mesmo com governos e grandes redes de televisão, que costumam se apoiar mutuamente. Nunca se deve esquecer que rádios e televisões são concessões públicas e as verbas oficiais de propaganda pesam muito em suas receitas. Nem se pode ignorar que presidentes, governadores, prefeitos, parlamentares e dirigentes polÃticos necessitam desesperadamente de "exposição midiática" e adoram aparecer nos telejornais ou em entrevistas. Quando podem ser estrelas principais de um programa televisivo, como ocorreu ontem com Dilma, o fato é comemorado como conquista polÃtica, algo destinado a alterar expressivamente o humor público e a correlação de forças polÃticas. Nem sempre isso acontece, mas a sensação do entrevistado é de que marcou posição.
A Globo e o governo Dilma não fogem à regra. Só cabeças muito maniqueÃstas demonizam a Globo ou demonizam o governo petista: eles estão muito mais próximos do que a vã filosofia imagina. Somente pessoas simplórias podem achar que Jô Soares é um impávido desbravador da opinião pública, um indignado contra as injustiças do mundo, alguém que não se dobra ao fascÃnio do poder ou à s ordens de seus superiores. Ou pensar que Dilma seja refratária aos salamaleques da Globo, em obediência a sabe-se lá que decisão de combater sem trégua à "mÃdia golpista". Tanto ele, o entrevistador, quanto ela, a entrevistada, têm total direito de fazer o que fizeram. Não contrariam nenhum código de conduta. Por que contestar um apresentador de talk-show por tomar partido ou pegar mais leve numa entrevista concebida para ser "digestiva" e agradável? Por que criticar a presidente por querer vender seu governo?
Em suma, não há por que condenar a entrevista de Dilma, encomendada pelo marketing palaciano e obedientemente organizada por Jô, ou por livre e espontânea vontade, ou por ordem do jornalismo global. Ela tem até mesmo um efeito colateral não desprezÃvel: ajuda a que se percam ilusões sobre a relação entre governo petista e grande mÃdia.
Isso posto, sobra a entrevista em si. E aà entra o discernimento crÃtico. A técnica empregada nela foi do tipo "eu levanto e você chuta", que bloqueia a naturalidade e trava a sinceridade do entrevistado e do entrevistador. Tudo muito recitado, previamente combinado, provavelmente editado, ajustado, etc. Seria mais legal se o lance fosse tipo pinga-fogo. Talvez por isso, a entrevista é entediante, pouco esclarecedora, não traz nenhum fato novo, é tão somente uma cansativa propaganda dos atos governamentais, alongada e glamourizada com umas pitadas de Dilma coração valente.
A entrevista é horrorosa e muito provavelmente produzirá efeito contrário ao desejado. Nela, ressaltam alguns defeitos imperdoáveis: falha de comunicação governamental, ausência de projeto polÃtico, fraqueza da protagonista, falta de um eixo expositivo. Alguns momentos foram simplesmente patéticos, tristes de se ver. Pô, era a Presidente da República! Ninguém pode ficar feliz com sua performance bisonha, repleta de tatibitates, platitudes e tropeços. Ela achou bacana lembrar que na cadeia lia bulas de remédio para dar vazão à necessidade de leitura e Jô nem sequer se envergonhou em dizer que "lambeu uma pedra do pré-sal e ela tinha gosto de sal".
A pergunta que fica é como algo assim pôde acontecer. Será que ninguém do PT viu isso ou procurou contribuir para modelar politicamente a entrevista? Será que o Jô não se deu conta do quão pouco à vontade ele estava, a ponto de sujar seu filme? Será que Dilma não viu que estava entrando numa roubada?
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria PolÃtica da Unesp.