Quando se escrever sobre estas últimas semanas com certo distanciamento, e não sob o signo de polarizações polÃticas simplórias, algum cientista social do futuro notará, talvez com divertimento, que o espectro de Karl Marx andou rondando o paÃs. Não que estejamos à beira de revolução violenta ou prestes a enfrentar catástrofe de sinal oposto, rumo à contrarrevolução. O Marx que nos tem assediado, ao contrário, é o autor fulgurante do 18 brumário, que narra, com indivÃduos de carne e osso, a história do golpe de LuÃs Bonaparte, o sobrinho que, a seu ver, surgia como repetição banal do tio extraordinário.
Contudo, a ideia de que os fatos se repetem, só que na segunda vez como farsa, não faz justiça nem à s poucas páginas do prefácio. Pode-se também, por exemplo, evocar o passado para revestir novos acontecimentos igualmente grandiosos, como quando os revolucionários de 1789 evocaram as tradições da Roma republicana ou imperial para dar um sentido, ainda que ilusório, à s próprias ações.Â
Nada simples o movimento da história. Cada um de nós, para não falar dos personagens diretamente envolvidos, esforça-se para escapar da primeira interpretação da frase de Marx, a mais difundida e a mais desonrosa: compreensivelmente, ninguém quer se perder num enredo de farsa, como se a tragédia de agosto de 1954 ou a de 31 de março de 1964 agora devessem terminar, quem diria, num trÃplex de Guarujá ou outros episódios bisonhos. Antes de mais nada, aliás, é preciso respeitar o sofrimento social inerente a uma devastação econômica que, na voz dos especialistas, não tem paralelo nas crises da república, sequer em 1930. Só isso deveria dar o tom à s ações de quem, daqui por diante, por um tempo maior ou menor, mas possivelmente até 2018, terá a responsabilidade principal de costurar respostas polÃticas concertadas ao terrÃvel mal-estar da sociedade, ainda destinado a agravar-se até por inércia.
A polÃtica profissional não mais está só. Não como Deus ex machina, pois, afinal, vieram para ficar de acordo com os comandos constitucionais, as instituições de controle e fiscalização, hoje notoriamente simbolizadas na Operação Lava Jato, têm sua referência histórica já garantida. A argúcia de Luiz Werneck Vianna identifica este conjunto de personagens com a puritana "revolução dos santos" e sua crença na supremacia da lei democraticamente estabelecida. Ou, se quisermos outra referência, caberá a eles pelo menos parte de certa "reforma intelectual e moral" que, no dizer de muitos, a sociedade brasileira já não pode mais dispensar, sob o risco da anomia.Â
Distante, este moderno universo jurÃdico, daquele moralismo que se convencionou tachar, depreciativamente, de "udenismo". De resto, contra esta depreciação, basta lembrar, em perÃodos próximos, a importância que teve a bandeira da "ética na polÃtica", por algum tempo corporificada quase exclusivamente no PT. Aquele universo não tem por que estimular, salvo cegueira generalizada, a repulsa à polÃtica e a suas exigências próprias, contribuindo antes para evitar que esta atividade essencial seja bloqueada ou distorcida, o que ocorre quando partido, estado e sistema de empresas públicas e privadas se articulam obscuramente e tendem a sufocar os mecanismos democráticos.
O petismo é um caso singularÃssimo de "vaidade de partido". Nasce para se contrapor a tudo e a todos, como se devesse corrigir a história de um paÃs errado desde o começo. Como rezavam, e rezam, os dogmatismos seculares ou religiosos, fora do partido (ou da seita) nenhuma salvação possÃvel. As lutas do pré-64 seriam expressão de indesejáveis alianças de classe. E as batalhas da redemocratização, que a princÃpio viram aquele partido cultivar inabalável "espÃrito de cisão", eram avaliadas, no que tiveram de inevitável e bem-vinda assimilação de valores liberal-democráticos, como conciliação com a "democracia burguesa" - haja vista o espantoso voto contrário ao texto da Carta de 1988.Â
Por alguma torção inesperada, há já alguns anos o petismo tenta enfiar-se nas vestes do nacional-desenvolvimentismo, quer na versão democrática dos anos 1950, quer na versão geiseliana. A mágica parece ter funcionado na primeira década do século, quando as condições da economia-mundo propiciaram um êxito devido, provavelmente, mais à fortuna do que à virtude. Com efeito, o ex-presidente Lula, protagonista deste êxito relativo, está hoje visivelmente redimensionado como estadista ou como grande lÃder da esquerda mundial.
O figurino menos desajeitado é o que, numa boa hipótese, poderá caber a Temer e ao PMDB. O impeachment de Collor pegou um paÃs igualmente arruinado, sem falar que não era nada trivial impedir o primeiro presidente da redemocratização eleito por via direta. Como é corrente apontar, Collor era um outsider e não tinha atrás de si um partido estruturado. O "centro polÃtico", sob fogo à direita (o próprio Collor) e à esquerda (a missão de que se encarregava o PT), reconstituiu-se sob o presidente Itamar: basta pensar no Plano Real, com o tucano Fernando Henrique, ou nas articulações congressuais, com o pós-comunista Roberto Freire. Um centro, portanto, que se abria à esquerda democrática e que, além da estabilização, tratava de pôr em prática vários dispositivos progressistas imaginados pelo constituinte. Â
Ninguém ignora o estado andrajoso dos partidos e da polÃtica, bem como a natureza particular dos desafios de agora. O passado vale até certo ponto: configura as tais circunstâncias que, para o prefaciador do 18 brumário, não escolhemos. Fazer a grande polÃtica é a tarefa que há de encontrar seus personagens, sempre sob a plena vigência da ordem democrática. Só esta permite expressar e conciliar conflitos, para além de palavras e gestos extremos que tanto dano nos têm causado. Sem isso, a ruÃna será nossa vala comum.
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.