Inimaginável qualquer nostalgia dos tempos duros do regime autoritário, mas é fato que, então, além de sonhar com a volta do irmão de Henfil, contávamos com referências segurÃssimas que eram a garantia de uma transição sábia e prudente rumo à vida democrática. De fato, reconfortava ter ao alcance da vista personalidades laicas ou religiosas - um Barbosa Lima Sobrinho ou um dom Paulo Evaristo Arns - cuja presença, no mÃnimo, indicava o roteiro básico e assinalava o reencontro do Brasil consigo mesmo.
Não haveria mais exilados ou clandestinos, presos ou perseguidos polÃticos, fato raro em nossa história. Prestes e os comunistas, Brizola e os trabalhistas, para não falar do novo mundo sindical que se cristalizaria em torno de Lula e do PT, se fariam presentes nas ruas e nas instituições, ampliando estas últimas e dando-lhes plena legitimidade. Tempo, ainda, de elaborações sofisticadas, que, mesmo pagando o inevitável tributo à s ilusões do momento, perguntavam-se, e respondiam positivamente, sobre as possibilidades da democracia em sociedades marcadas por imensas desigualdades. Ela seria - como se chegou a dizer numa fórmula de rara felicidade, trazida dos comunistas italianos - um "valor universal", meio e fim dos processos de democratização e modernização.
No coração das trevas, as eleições de 1974 registraram o surgimento de uma elite dirigente em potencial, que, de fato, iria assegurar o governo do paÃs dali a poucos anos. PolÃticos de gerações anteriores, como Ulysses, Tancredo e Montoro, misturavam-se a "jovens" de pouco mais de trinta ou quarenta anos, como Itamar Franco, Pedro Simon e Marcos Freire. E neste âmbito mais diretamente ligado à polÃtica profissional, o lugar privilegiado de gestação daquela promissora elite era, nem mais nem menos, o velho MDB, o partido da "oposição consentida".
Deve-se admitir que o MDB, um sucesso de público, como o comprovariam as sucessivas vitórias eleitorais, jamais teve fortuna crÃtica à altura. Ser "consentido" era já um estigma forte: quem estava no partido lutava só pelas "liberdades burguesas", declinando de responsabilidades revolucionárias, tal como ensinavam a lição chinesa ou a cubana. Os fantasmas do voto nulo e da autodissolução o rondaram em conjunturas crÃticas. E seu sentido mais essencial - ter sido, desde sempre, o lugar de convergência de oposicionistas da primeira hora e dissidentes do regime, de liberais, comunistas do PCB e democratas em geral - talvez não haja sido apreendido pelos que viriam depois, inclusive e paradoxalmente as próprias figuras da esquerda nova.
Antes de mais nada, o PT. ConstruÃdo ao longo de décadas em torno de um mito operário de "base", o partido se mostrou substancialmente alheio à s tratativas da transição, como se sua mera existência ressignificasse toda a história e, por exemplo, o dispensasse de votar em Tancredo ou permitisse infantilidades antes de assinar a Carta de 1988. Trouxe ainda, como pecado de origem, uma cultura polÃtica que, enfatizando um "espÃrito de cisão" em relação à frente emedebista, excluÃa e separava, subordinava e impunha um mando. A afirmação "classista" inicial, que o distinguiria de "todo o resto burguês", implicava uma das modulações clássicas do discurso populista, fundamentado na afirmação exasperada do "nós contra eles". Uma lógica binária que marcaria as relações polÃticas, e não só elas, especialmente nos anos de poder incontrastado.
Houve algo de novo nas alianças partidárias a partir de 2003. Se observarmos sem indulgência, aconteceu menos uma homogeneização das práticas do partido dominante à s da "velha polÃtica" do que a decapitação sistemática dos aliados do petismo e a introdução sistemática de modos agressivos de cooptação e subordinação: inicialmente, as legendas menores e, depois, o próprio PMDB. Assim, na hora de contribuir para renovar as elites, o petismo comportou-se de forma irresponsável. E se a capacidade de renovar ideias e práticas for o critério para avaliar uma força polÃtica, não há dúvida de que hoje estamos diante de um fracasso histórico de custosa reparação.
Verdade que ela teve diante de si partidos cujas direções estavam envelhecidas ou que, no caso do arqui-inimigo tucano, se dividiram entre lideranças inconciliáveis. Tais grupos, mesmo com a implantação "capilar" no território tÃpica do PMDB ou com a orientação social-democrata (ou social-liberal) do PSDB, se comportaram de modo tradicionalÃssimo e se desligaram progressivamente da vida associativa, dos centros de cultura e dos locais de trabalho. Têm votos e ganham eleições, elegem bancadas, governadores e até presidentes, mas são exércitos dispersos, sem capitães ou bandeiras capazes de gerar uma certa visão dos problemas razoavelmente difundida na sociedade.
Por isso, como diz José de Souza Martins, incorremos massivamente num tempo agônico de partidarização sem politização. Na vigência do regime democrático, que facilita e promove a vida intelectual, não soubemos construir figuras de referência. Parece não falarmos a linguagem geral que consente a divergência e a pluralidade. Perdemos - quem sabe, momentaneamente - a ideia de que deve existir, por força das coisas, um terreno comum entre os contendores, algo, em suma, que permite explicitar radicalmente as divergências e manter como âncoras valores compartilhados e princÃpios de lealdade mútua.
Quando partidos e classes quase se confundiam e os antagonismos respondiam a uma lógica bruta, ainda assim houve quem tivesse a consciência de que a exacerbação irracional do conflito só pode levar à ruÃna generalizada. Mal começou, entre nós, a pesquisa sobre as razões pelas quais o petismo, como "ideologia" e como prática, contribuiu tão pouco para o refinamento desta consciência, a qual, porém, é condição inescapável para dirigir a mudança social contemporânea.
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.