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Constringir a soberania popular?

José Antonio Segatto - Janeiro 2017
 

Depois de cada eleição ou em momentos de crise política, a proposição da necessidade impreterível de reforma política é sempre reposta. Agora, nem bem anunciados os resultados das eleições municipais, porta-vozes, de direita e de esquerda, de importantes setores dominantes (partidos, corporações, governos, movimentos, sindicatos, mídia, igrejas, etc.) põem-se a trombetear a exigência urgente de mudanças na legislação e/ou nas regras eleitorais e de regulação partidária.

A pauta do momento inclui, entre outras, questões como: 1) substituição do voto obrigatório pelo facultativo; 2) troca do voto proporcional pelo distrital; 3) proibição de coligações partidárias nas eleições proporcionais; 4) estabelecimento de uma cláusula de barreira (determinado porcentual de votos) para que os partidos tenham direito à atuação legislativa, acesso ao Fundo Partidário e ao horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão; 5) volta do financiamento de campanha por pessoas jurídicas (considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal). Tais medidas seriam, justificam os propositores, providenciais para salvaguardar o bom funcionamento das instituições e garantir a governabilidade, afora regular o processo eleitoral e dar-lhe maior previsibilidade e legitimidade.

De todas elas, a mais controversa é, sem dúvida, a primeira (voto facultativo). O motivo alegado é que a crescente abstenção, somada à ampliação dos votos nulos e em branco, seria um sintoma de recusa dos cidadãos à participação eleitoral compulsória e um indício de que os pleitos se teriam transformado numa farsa desprovida de legitimidade. Exemplares disso seriam as eleições municipais de 2016, em que a abstenção foi de 17%, aumento de 0,5% em relação às de 2012; e também os votos nulos e em branco, que passaram de 8,3% para 10,3% de uma a outra para prefeito e de 7,7% para 9,17% para vereador. Ademais, o voto, enquanto direito político, deveria ser da livre escolha do cidadão exercê-lo ou não. Por conseguinte, não poderia ser imposto - o que constituiria uma exigência de natureza autoritária.

Contrapondo-se a esses propósitos, outra vertente entende que o voto obrigatório é, de fato e de direito, o procedimento mais democrático no exercício da soberania popular. Além de incorporar a grande maioria da população ao processo político, pressupõe que, como direito de cidadania, ele implica deveres - nesse caso é a responsabilidade cívico-republicana. Já o voto facultativo, ao contrário, seria uma forma de diminuir drasticamente o eleitorado - sua proposição refletiria, na verdade, o elitismo excludente de facções conservadoras como a das velhas classes dominantes brasileiras, que nunca tiveram muito apreço pela participação popular ativa na vida política e sempre manifestaram sérias objeções à generalização dos direitos de cidadania e aos procedimentos democráticos.

O sistema eleitoral - instituído em 1932 e em funcionamento há mais de sete décadas - fundado no voto universal, obrigatório e secreto, no voto proporcional de lista aberta (deputado federal, estadual e vereador) e majoritário (presidente e senador, governador e prefeito), permitiu a criação no Brasil de um dos maiores eleitorados do mundo, com mais de 140 milhões de eleitores - de 1945 a 2016 ele foi multiplicado por 20, passando de 16% para mais de 70% da população. Um processo de inclusão política considerável. As eleições ganharam o significado de massivas manifestações políticas.

Nesse sentido, a tese da abstenção eleitoral e do aumento exponencial dos votos inválidos como negação e/ou abdicação, imaturidade ou ignorância, relativas à participação política tem se mostrado falaciosa. Vários pesquisadores (Jairo Nicolau, Fernando Limongi e outros) têm constatado um aumento expressivo dos votos válidos, em especial com a introdução da urna eletrônica. E também que o aumento do eleitorado faltante não é tão expressivo como muitos querem fazer crer.

Uma simples digressão histórica é suficiente para mostrar que tanto o voto distrital quanto o facultativo vigeram no País por mais de um século. Nesse longo período, a participação eleitoral foi excessivamente restrita - no fim do Império o eleitorado não chegava a 1% da população e ao longo da Primeira República o porcentual de votantes nas eleições presidenciais girava em torno de 2% a 3%.

Lima Barreto, numa crônica do início do século, criou uma República fictícia em que ironiza a exclusão popular das eleições: "Na Bruzundanga, como no Brasil, todos os representantes do povo, desde o vereador até o presidente da República, eram eleitos por sufrágio universal e, lá, como aqui, de há muito que os políticos práticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador - o voto". Posteriormente, durante a ditadura estado-novista (1937-1945) e a militar (1964-1985), a operação de extinção do sujeito desestabilizador ou incômodo (voto) foi radicalizada. Na primeira, pela abolição das eleições; na segunda, pela instauração das eleições indiretas (prefeito de capital, governador, presidente, senador "biônico").

Assim, compreende-se que, se o sistema eleitoral em vigor não é ideal, é ao menos razoavelmente democrático. Com efeito, ele requer, sim, aperfeiçoamentos determinados que elidam certas distorções - mas mudanças que não impliquem normas e procedimentos regressivos a experiências excludentes e autoritárias, inibidoras do exercício dos direitos de cidadania e/ou de contenção da democracia. Ao contrário, a atualização das regras político-partidárias e eleitorais - que já vem sendo realizada gradativamente desde, pelo menos, os anos 90 - é necessária para o aprimoramento da soberania popular e da representação política e, consequentemente, das instituições democráticas. O que não se pode nem se deve - ensina o dito popular - é "jogar fora a criança com a água suja do banho".

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José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp.

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Fonte: O Estado de S. Paulo, 28 dez. 2016.

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