Os afeitos à arqueologia polÃtica, saudosos talvez de explicações mais simples do mundo, podem fazer recuar a máquina do tempo e evocar a geopolÃtica evidenciada em documentos do velho comunismo, os quais ordenavam em nÃvel planetário corações e mentes que davam vida a toda uma importante corrente do já distante século passado. Por esta explicação, a roda da História girava com determinação e obedecia a leis mais ou menos precisas e automáticas, só aqui ou ali rapidamente detidas por acidentes singulares, incapazes de alterar o sentido geral das coisas.
A partir de um núcleo - uma espécie de Meca secularizada, como seria a Moscou revolucionária há exatos cem anos -, irradiavam-se os diversos partidos comunistas nacionais, uns mais, outros menos enraizados na realidade local, secundados, nos amplos territórios então coloniais, por movimentos de libertação que punham em xeque o velho imperialismo europeu e aquele novÃssimo, de marca norte-americana. Um cÃrculo de ferro estreitava-se em torno da "metrópole capitalista", e paÃses da periferia, como o Vietnã ou as colônias portuguesas na Ãfrica, seriam como peças de dominó, caindo em sequência e sendo anexadas ao bloco socialista.
Na verdade, a tal "metrópole", mesmo em aparente situação defensiva, dispunha de armas poderosas. Por exemplo, podia transformar o "terceiro mundo" em arena de conflitos localizados, não raro apoiando ditaduras sangrentas e travando guerras por procuração. Acima de tudo, apresentava como vitrines irresistÃveis dois modelos dinâmicos de sociedade: o primeiro, seu verdadeiro motor, de corte mais privatista, o segundo de feição mais suave, em que se combinavam mercado e direitos de modo concertado. Trata-se, evidentemente, dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, esta última a viver seus "trinta anos gloriosos" do segundo pós-guerra.
Na visão comunista ortodoxa, a social-democracia europeia não passava de uma "concessão da burguesia", não o bom resultado da presença massiva de sindicatos e partidos, barganhando vantagens que iam além do plano econômico. Com efeito, a generalização da democracia polÃtica e de valores como a justiça e a solidariedade tinham a marca de uma esquerda de classe convertida ao Ocidente polÃtico. Mais do que isso: parte constitutiva deste mesmo Ocidente.
Um cenário assim desenhado parecia excluir mudanças bruscas, a não ser em suas margens "terceiro-mundistas", em que se misturavam periodicamente guerrilheiros de aura romântica e intelectuais radicalizados. O jogo que se jogava tinha aparência previsÃvel: classes e comportamentos eleitorais apareciam fortemente correlacionados em cada paÃs. As superpotências conferiam-se mutuamente sinal verde para resolver cisões ou dissidências no próprio "campo", e a dissuasão atômica sinalizava a reiteração de imensa e complexa "guerra de posições", com movimentos lentos e estudados de todos os contendores. Um tempo de enxadristas pacientes.
Como é sabido, 1989 cai - à primeira vista - como um raio em dia de céu sereno: um dos dois "campos" implode sob o peso de sua ineficiência econômica, passada a primeira industrialização extensiva, e muito especialmente de sua rigidez polÃtica, que nem remotamente conseguira absorver as estruturas flexÃveis e sofisticadas das democracias liberais. Abriu-se assim, imediatamente, uma fase marcada pelos grandes lances sucessivos de uma "guerra de movimento", coroando, nos termos de uma visão apologética que se fez senso comum, o triunfo do mercado e da democracia, ambos pobremente qualificados. O fim da história, em suma.
O contexto superficialmente ordenado da Guerra Fria e da competição entre sistemas, com racionalidade própria e razoável grau de previsão, daria lugar, depois da euforia inicial, a outro de grandes incertezas, que estamos distantes de conseguir minimamente "elevar a conceito". Fortemente assimétrica, a unificação do mundo não teve sentido único e comportou resultados inesperados, como a ascensão da China e da Ãndia à condição de potências econômicas, imensas fragilidades internas à parte. A polÃtica manteve-se fortemente atrasada em relação ao ritmo alucinante da economia: as instituições supranacionais entraram em crise, atacadas por movimentos nativistas que prometem muros, acenam com exclusões sociais e étnicas, põem em questão tendências pluridecenais à tolerância e à aceitação da diversidade.
No próprio cerne do Ocidente polÃtico, as conquistas de civilização se veem ameaçadas de modo antes impensável. Rompeu-se ou se esgarçou o nexo entre o mundo dos trabalhadores manuais e o sistema democrático - um nexo que, a bem da verdade, contou regularmente com a mediação da esquerda, socialista ou comunista, que integrava aqueles setores na polÃtica e na sociedade. Agora, os "desconectados" do mundo global se tornaram massa de manobra de polÃticos "populistas" - se quisermos usar o termo polissêmico - ou, para dizê-lo abertamente, neofascistas, como em tantas situações europeias. E, ainda por cima, setores da própria esquerda apregoam, mesmo depois das recentes e malfadadas experiências latino-americanas, a atualidade da "forma populista da luta de classes" como alternativa, ao mesmo tempo medÃocre e arriscada, à s tendências autoritárias que estão se gestando.
Pode ser que as mudanças em curso não sejam muito mais caóticas do que o mundo mapeado e conhecido no qual nos movÃamos familiarmente há algum tempo. Tudo somado, como dizia um historiador, todas as épocas estão a igual distância de Deus - e, acrescentarÃamos, bem longe de qualquer perfeição. Uma hipótese de superação - provisória! - das forças desagregadoras só pode advir da reunião em torno do ideal democrático das grandes tradições que nos trouxeram até aqui. Com a palavra, por toda parte e como sempre na hora do perigo, conservadores, liberais e socialistas.
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.