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Balanço de conjuntura

Alfredo Maciel da Silveira - Fevereiro 2017
 

Na alma da maioria esmagadora dos brasileiros, daquelas pessoas de bem que vivem o quotidiano da sobrevivência, dos mais humildes, das camadas médias, dos pequenos e médios empresários e executivos, do interior e das grandes cidades, correm sentimentos de desalento, insegurança e desapontamento face ao presente e ao futuro. No burburinho entre os mais humildes, em seu vaivém diário do transporte coletivo, herdeiros de cinco séculos de exclusão e de subalternidade face a uma cultura política patrimonialista e autoritária, ouve-se o murmúrio de que estão "nas mãos de Deus", fundamento de um ato de fé:

- Vai melhorar!

- Amém, vai melhorar...

Um fio de esperança também parece estar presente naqueles pequenos empresários que até agora conseguiram pelo menos resistir à crise. Acostumados aos altos e baixos dos ciclos de negócios, deles ainda se pode ouvir:

- É só olhar o passado. Crises não são para sempre!...

Mas de um modo geral dissiparam-se estabelecidas crenças, referências e projetos quanto a um continuado desenvolvimento socioeconômico do país. Neste sentido abriu-se pelo menos o campo a reformulações e recomposição de alianças estratégicas.

Diante da incompletude das conquistas democráticas da Constituição de 1988, diante da captura do sistema político pelas mais perversas conjunções do dinheiro com o poder político, abre-se novamente, à esquerda e à direita, o campo político às piores regressões totalitárias e populistas. Pessoas simples de camadas médias, desesperadas pela ausência de canais de participação, pela total desconfiança na mediação da política, por não terem como vocalizar suas demandas, não terem "a quem apelar", então chegam a uma conclusão de aparente senso comum: se as Forças Armadas já estão nas ruas a dissuadirem focos de caos social, então "que se lhes entreguem todos os poderes", para que elas "façam a limpeza" e administrem um "período de transição até novas eleições gerais". Portanto aqui se reverbera a velha "missão tutelar" da Forças Armadas, como era até há pouco (ou ainda seria?) ensinada nas academias militares.

E quanto aos empresários, altos executivos e investidores da grande indústria, do agronegócio e das altas finanças?

Antes de mais nada diga-se que esse grupo social está predominantemente internacionalizado, no sentido do casamento, pela lógica do mercado, dos seus interesses econômicos e financeiros ao capitalismo global. É lógico que esse grande grupo fundamental ocupa uma posição inteiramente subordinada nas relações econômicas internacionais. Além disso, aquela figura do "grande empresário", "dono de empresa", consolidada no Brasil até a virada do novo século, líderes de classe com expressão na vida política, a exemplo do ex-Vice-Presidente José Alencar - e não por acaso aliado do PT, como se verá a seguir -, estaria em grande parte regredindo. Na próprias federações e associações patronais avança a atuação, já não dos proprietários, mas dos altos executivos de empresas, integrantes do mesmo grupo pelo seu lugar nas relações sociais.

Já na política, o alinhamento desse grupo seria algo muito mais complexo. Eles tem a família, o patrimônio e os pés fincados aqui, no solo brasileiro. Podem eventualmente enviar os filhos ao exterior, mas há óbvios limites a isto. Enquanto grupo social, não poderiam emigrar. Então, o que lhes resta? Conviver com a miséria? Com a crise social?

Pode-se arguir que historicamente deram as costas ao povo, recorrendo à força bruta quando necessário. Veja-se o passivo social no campo da educação, só como exemplo.

Mas em algum momento mais recente, talvez trazido pela onda avassaladora do capitalismo global, todo aquele imenso passivo estrutural a separar ricos e pobres tornou-se disfuncional, não ao capitalismo global, mas a estes grupos, seja quanto ao ambiente de negócios - pela perda de competitividade sistêmica, aí computado o atraso educacional e de toda a infraestrutura social básica -, seja quanto à convivência cidadã no espaço público, a impor carros blindados, condomínios fechados, segurança privada, etc.

Somem-se a isto as largas avenidas abertas pelas instituições democráticas consagradas em 1988, a acenderem fundadas esperanças no avanço de uma democracia participativa e de massas na virada para os anos 90. E de fato foi o que se viu, como fato social a embasar, naquela quadra, o crescimento contínuo de determinado partido, o PT, dada a sua promessa de reformismo intenso.

É nesse contexto que relevantes frações daquelas elites socioeconômicas, bem como personalidades representativas de seu meio político, passaram a ter muito bons motivos para acreditar no PT. Armando Monteiro, Guilherme Afif, Kátia Abreu, Henrique Meirelles, só para ficar em nomes mais recentes, aí estão a demonstrar. E lembrar que Delfim Netto, um dos seus intelectuais orgânicos por excelência, foi conselheiro privilegiado de Lula.

Mas vieram os acontecimentos de 2015 e 2016. É amplamente reconhecido, inclusive nas hostes petistas, que em algum momento daquele recente período tais elites desembarcaram da aliança, e ostensivamente protagonizaram o impeachment de Dilma Rousseff. Mas o porquê daquela viragem política - e seu consequente papel determinante na conjuntura inaugurada pelo governo Temer - estão longe de serem tão facilmente reconhecidos. Desde logo, para bem compor a narrativa do "golpe", o petismo e seus amigos da "frente de esquerda" agarraram-se à explicação economicista, segundo a qual a burguesia "interna" e dependente alinhou seus interesses aos do imperialismo norte-americano, que vinham sendo contrariados pelo Brasil nas áreas do Brics, do petróleo e da geopolítica latino-americana. Numa interpretação extrema, o próprio "golpe" teria sido tramado pelos EUA.

Uma expressão bizarra de tal interpretação: chegam a reconhecer que Dilma teria sido de fato deposta face à crise de governabilidade, para em seguida argumentarem ter sido esta própria crise urdida nas sombras pelos EUA, em mais um caso de suas operações encobertas de regime change, envolvendo o preparo das manifestações públicas mediante organizações ideológico-políticas locais brasileiras ligadas a think tanks norte-americanos, a ação coordenada da mídia, o preparo de juízes e procuradores da Lava-Jato, etc.

Seria fácil desmontar estas teses em detalhe revendo-se as contradições do processo político que levou ao impeachment, mormente as internas, entre PT e governo, e deste com sua base aliada, que inviabilizaram o imperativo de um ajuste fiscal gradualista e prolongado, já detectado desde 2014 e escamoteado pelo PT na campanha eleitoral. E diga-se que os partidos de oposição, da ampla frente que apoiara Aécio Neves no segundo turno em 2014, estiveram o tempo todo a reboque dos acontecimentos. Mas quanto à viragem política do já mencionado grupo socioeconômico fundamental - nucleado na indústria, agronegócio e finanças - apenas cabe aqui voltar à premissa de que seus interesses econômicos e financeiros sempre estiveram perfeitamente integrados ao capitalismo global, em particular ao sistema financeiro internacional, independentemente de tensões entre os EUA e a política externa dos governos do PT.

Economia em recessão, falência dos serviços públicos, investimentos privados paralisados pelas expectativas negativas dos empresários, investimento público praticamente zerado pela estrutura gradativamente desequilibrada do gasto público ao longo dos governos do PT. E nenhuma capacidade de negociação junto ao poder Legislativo, do qual dependiam as reformas estruturais necessárias. Desemprego em massa já então na casa dos 12 milhões (mais de 20 milhões, se computados os que desistem de procurar emprego) e sinais de crise social por todo lado acenderam os alarmes daquelas classes dominantes com expressão na Fiesp, Febraban, Firjan, CNI, CNA, CNT.

Aquelas classes podem suportar financeiramente prolongadas baixas do ciclo de negócios. Mas já não podem suportar uma crise social e uma situação de anomia na escala que estas adquirem no Brasil de hoje. Num intervalo de umas duas semanas todas estas entidades patronais fizeram publicar na grande imprensa manifestos pelo impeachment, o que definitivamente respaldou o deslocamento dos partidos da base aliada em direção àquelas altamente improváveis maiorias de dois terços, nas duas casas legislativas, maiorias exigidas no processo do impeachment que acabaram com folga superadas.

Não por acaso, consumada a posse definitiva de Temer, seguiu-se uma romaria de manifestações de entidades patronais de um amplíssimo arco associativo, de todos os setores produtivos, recebidas durante semanas por Temer em audiências lotadas às centenas de participantes no Planalto, quando foram levar sua solidariedade e reclamos ao novo governo. Diga-se que tais eventos, de alta relevância política, foram de acanhada cobertura na mídia, embora extensamente registrados pela rede TVNBR do governo federal.

Naqueles eventos, Temer debateu sua estratégia e, isto é crucial para compreender as negociações políticas de Temer, cimentou sua principal base social de apoio com vistas às amargas reformas estruturais a serem passadas junto a um sistema político em frangalhos, como é notório, e sob um presidencialismo de coalizão operante sem compromissos programáticos entre aliados, operante no varejo da troca de votos por cargos e benesses. Claro que a base social do governo não se circunscreve àquelas classes patronais. Mas sem dúvida elas constituem o bloco socioeconômico hegemônico a ditar o perfil das pretendidas reformas.

Na montagem do governo, e de forma consentânea aos respectivos apoios sociais e políticos, dois procedimentos distintos foram observados. De um lado, a composição de uma equipe econômica coordenada e homogênea nos aspectos técnicos e ideológicos, sob notória liderança de Henrique Meirelles, personificação estelar do bloco socioeconômico hegemônico. E de outro lado, a ida ao "mercado de votos", começando pelo círculo de seus amigos peemedebistas mais próximos, seguidos dos diversos aliados, inclusive os nem tanto amigos do próprio PMDB.

Então, desde a formação inicial do governo e ajustes subsequentes da equipe, com sua experiência de ex-presidente do PMDB, de ex-presidente da Câmara por três vezes, de ex-aliado do PT e vice de Dilma, Temer sem dúvida nenhuma "precificou" por antecipação todos (ou quase todos) os percalços das tempestades vindouras, principalmente as oriundas da Lava-Jato. Não é difícil ler a regra básica da negociação de cargos revelada logo nas primeiras semanas de governo: "Hoje eu te nomeio em troca de apoio; amanhã, se fores pego nos ‘malfeitos’ e, sob a pressão da opinião pública, desfaz-se o acordo e a culpa é tua".

Aquela "precificação" significa essencialmente assumir os desgastes e riscos inevitáveis de composições políticas absolutamente imperativas, dada a crise terminal e agônica do sistema político. É como se estivesse pronto para aqueles "movimentos de sacrifício" dos jogos estratégicos, do xadrez ao judô. Claro que as idas e vindas de Temer, suas "hesitações", "fraquezas", "derrapadas", "erros", no quotidiano da negociação política, fazem a delícia diária de preclaros articulistas da grande imprensa sem perscrutarem o solo lamacento por debaixo da presente conjuntura e os determinantes mais profundos do rumo geral da navegação off road até aqui conseguida pelo governo.

Na outra ponta, Temer joga todas as cartas na travessia da crise econômica com sua dimensão fiscal já irradiada na amplitude federativa, tendo como carta na manga a sua investidura pelo patronato enquanto um administrador da crise, posição da qual todos dependem, que a todos conduza às eleições de 2018 sem rupturas institucionais, vale dizer, preservadas a todo custo as instituições democráticas nascidas da Constituição de 1988.

Para as diversas forças políticas deveria ser o tempo de preparar a renovação da política, de acumular forças, de recompor alianças estratégicas, enfim, fazer desses tempos a oportunidade do recomeço. Algumas dessas forças talvez já operem nesta positividade enquanto outras renitentemente miram o passado ou buscam extrair vantagens da instabilidade institucional.

Não bastassem os antigos vícios do sistema político e a recente crise econômica como fontes de instabilidade, os abalos da presente conjuntura têm seu epicentro na Lava-Jato. Aqui geram-se tensões entrecruzadas no aparelho de Estado, destacadamente as que opõem agentes das instituições de controle da República (Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal, Tribunais de Contas) a agentes das instituições governantes (Executivo e Legislativo). Acrescente-se os óbvios conflitos da Lava-Jato com o poder econômico e político das empresas investigadas.Tais embates se dão interativamente com a sociedade - fonte última de sustentação e legitimação das posições em luta - sob a mediação de redes de comunicação formadoras de opinião.

Assim vem sendo testada a plasticidade do aparelho do Estado às suas tensões interiores, às suas relações no âmbito do Estado ampliado (sociedades civil e política) e deste com o conjunto da sociedade. Muito do que parece ser condutas "desviantes" dos agentes envolvidos, que numa visão formalista e cartesiana indicaria certa "balbúrdia" institucional, apenas evidencia o caráter relacional do poder, o grau de capacidade dos atores realizarem os seus objetivos ou interesses segundo relações de forças. Tomados em conjunto, aqueles agentes, grupos sociais e econômicos, bem como suas respectivas relações, facilmente identificáveis em sucessivos casos recentes da conjuntura, compõem o campo estratégico do Estado onde a resultante das ações foge ao controle de quaisquer dos agentes tomados isoladamente.

Ainda agora a Lava-Jato aproxima-se talvez de seu auge pelos desdobramentos processuais das delações da Odebrecht. Aguçam-se as pressões e contrapressões, tendo, do lado dos acusados, as principais lideranças da base política de Temer, inclusive vários de seus ministros, e, do outro lado, os agentes do Ministério Público, Polícia Federal e Justiça. Grupos ativistas liberal-democratas e republicanos, à direita do espectro político, presentes nas redes sociais, articulam manifestações populares para o próximo dia 26 de março em defesa da Lava-Jato e do expurgo de políticos corruptos. O alvo de momento abrange poderosos membros da base do governo no Senado e na Câmara.

Como se comportará o governo diante de possível onda da "volta às ruas"? Opor-se à Lava-Jato? Qual a sua margem de manobra?

As eleições municipais de 2016 foram indicativas do recuo acentuado do PT. Mas nem por isso traduziram apoio ao atual governo, de baixa aprovação, como estão a indicar as pesquisas de opinião.

No Legislativo avançam consistentemente as reformas econômicas. E as eleições das mesas do Senado e da Câmara apontam tendência de estabilidade da base aliada. Embora controvertida, a indicação de Alexandre de Moraes para o STF recebeu apoio público de dois procuradores da Lava-Jato, inclusive de Deltan Dallagnol. E o Senado aprovou com folga o indicado de Temer. Os primeiros indicadores econômicos de 2017 sugerem possível reversão do ciclo de baixa, muito longe ainda de amenizar o sofrimento daqueles milhões de desvalidos, caldo de cultura de soluções autoritárias e populistas à esquerda e à direita.

As prolongadas negociações para a escolha do novo Ministro da Justiça estão a sinalizar que Temer não cometeria o "suicídio" de nomear alguém com imagem contrária à atual tendência punitiva da Lava-Jato. Com a flexibilidade já demonstrada, Temer terá talvez a oportunidade de se tornar menos refém das forças do atraso encasteladas no Congresso, neutralizando, com a ajuda das ruas, potenciais retaliações políticas no Congresso decorrentes não apenas das depurações que fatalmente terá que fazer em sua própria equipe, como também dos interesses contrariados nas indicações ao Ministério da Justiça. Ou seja, em caso de avanço das ruas, Temer tentaria previamente ou se manter equidistante dos contendores, ou se compor com as ruas.

Mais à frente Temer enfrentará no TSE o processo de cassação da chapa Dilma-Temer. E já manifestou publicamente sua real preocupação com o mesmo. Já antecipou que o processo poderá ser longo, dando lugar a impetração de recursos até o STF se necessário.

O tempo dirá.

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Alfredo Maciel da Silveira é MSc. Eng. de Produção e Doutor em Economia.

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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