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Chile: frente popular, radicalismo e revolução passiva

Fernando de la Cuadra - 1999
 

Alberto Aggio. Frente Popular, radicalismo e revolução passiva no Chile. São Paulo: Fapesp/Annablume Editora, 1999. 231p.

A recente história chilena tem sido conhecida pelo público brasileiro quase que exclusivamente pelos abusos aos direitos humanos cometidos durante o regime autoritário do General Pinochet. Os chilenos tampouco estão livres desta armadilha da história. Efetivamente, com ilustres exceções, nesta última década, os chilenos têm estado completamente presos às lembranças traumáticas vindas de duas experiências contrapostas: a via chilena ao socialismo e a ditadura militar. Estas circunstâncias trágicas, dolorosas e descarnadas têm impedido aos chilenos alçar o olhar com uma perspetiva de mais longo prazo, para tentar compreender os fatos marcantes da constituição dos sujeitos políticos e sociais e, em definitivo, a construção da sua identidade como nação. Hoje os chilenos são, ante mais nada, um povo dilacerado por disputas irreconciliáveis e em permanente conflito, bastando somente um pequeno pretexto para que venham à luz as visões contrapostas que estes têm sobre o futuro do seu país. A detenção de Pinochet em Londres e as próximas eleições de dezembro trazem de volta o clima de confronto que expressa esta divisão.

Justamente por isso resulta tremendamente estimulante "ler" o atual panorama nacional a partir de uma perspetiva histórica que supere os acontecimentos da década de 70, para remontar-nos às origens do Estado democrático moderno no Chile, que teve início nos primórdios do século (na década do 20) e se consolidou durante a vigência dos governos radicais. Nesse sentido, o livro do professor Alberto Aggio proporciona uma valiosa chave analítica para entender melhor o Chile de hoje, precisamente porque a noção de revolução passiva, empregada na sua pesquisa, nos remete ao passado iluminando o presente, quer dizer, permite uma interpretação dialética e abrangente de todo o processo econômico, político e social e não somente de uma fase ou período em particular.

Resgatando portanto uma visão processual do desenvolvimento, o autor consegue interpretar a história chilena a partir de momentos de continuidade e mudanças, articulando e integrando diversas conjunturas aparentemente desvinculadas, numa visão totalizadora. Apropriadamente utilizada, a perspetiva da revolução passiva permite ilustrar o decurso no qual o conjunto da sociedade empreende a modernização como "mudança estrutural, sem que haja uma transformação social de caráter radical." Explorando esta vertente, para o autor, a instalação da Frente Popular em 1938 e os governos radicais que se seguiram até 1952 seriam ilustrativos de uma modalidade específica de revolução passiva na qual o Estado aparece como um absoluto racional, isto é, como aquele órgão capaz de organizar e promover o desenvolvimento capitalista "pelo alto", empurrando o resto da sociedade nesta empresa transformadora, num contexto onde a burguesia não tem força suficiente para impor as modernizações de que o país precisa.

Tal como sugere o título, Aggio aborda uma questão relativamente esquecida na historiografia chilena, qual seja, a emergência da Frente Popular e os posteriores governos radicais, lapso que se estende por 14 anos. Em sua versão mais convencional, este período poderia caraterizar-se (em pouquíssimas palavras) como uma etapa onde o regime oligárquico entra em crise profunda e, uma vez que nenhuma classe em particular é capaz de construir uma hegemonia, os diversos atores políticos e sociais dispõem-se a sancionar um tipo de acordo ou "arranjo democrático", pelo qual assumem o compromisso tácito quanto à necessidade de industrializar o país, garantir a democracia e atender as demandas sociais. Como forma cristalizada deste acordo, o Estado desempenha um papel fundamental no desenvolvimento econômico e social do país, executando grandes obras de infra-estrutura e apoiando com créditos e subsídios grupos significativos de latifundiários e do empresariado emergente e implementando um vasto programa de intervenção do tipo Estado de bem-estar.

Com uma orientação eminentemente gramsciana e apoiando-se num abundante e rico material bibliográfico, Aggio consegue esmiuçar e colocar em questão alguns dos grandes mitos da historiografia nacional, tais como o de que o país viveu sob a égide de uma trajetória republicana sem máculas ou que a democracia chilena era um exemplo de inclusão e representatividade. Na interpretação do autor, a dominação oligárquica é "substituída" por uma coalizão de partidos de centro-esquerda, hegemonizada pelo Radicalismo, instaurando-se um processo de reformas, mas sem alterar significativamente o poder das classes dominantes. Isto condicionou a inclusão das classes populares, as quais se incorporaram na cena nacional somente a partir de uma condição subordinada, negando, por essa via, não somente a emergência de uma revolução dos de baixo (institucionalizando o conflito), mas também estabelecendo sérias restrições a uma participação mais efetiva destas.

Portanto, segundo o autor, as forças aglutinadas em torno ao programa da Frente Popular e do Radicalismo representariam uma experiência singular de "revolução-restauração", em que a construção do moderno Estado chileno se fez mudando para conservar. Assim, o caráter incompleto deste processo ou, em outras palavras, esta modalidade específica de revolução passiva é que permitiria entender o posterior surgimento das denominadas "alternativas globais" que desde 1964 passaram a buscar a resolução definitiva para esta forma de revolução passiva. No entanto, no dizer do autor, a revolução passiva teve na instauração da ditadura em 1973 sua solução clássica: "à maneira de uma 'revolução-reacionária', abriu passagem para a emergência de um novo ciclo de revolução passiva, de perspectiva atualíssima quanto às tendências contemporâneas do capitalismo mundial".

Consideramos que, precisamente, por este tipo de enfoque processual e prospectivo e pelo uso de um arsenal teórico consistente, o livro de Alberto Aggio representa uma leitura indispensável para todos aqueles que continuam interessados em pensar uma alternativa teórica e política para o futuro da região.

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Fernando de la Cuadra é sociólogo.



Fonte: Jornal do Brasil , Idéias, 30 out. 1999.

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