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A lista fechada e o crime impossível

Arlindo Fernandes de Oliveira - Março 2017
 

Anuncia-se um novo consenso na política brasileira: os partidos de maior representação no Congresso, PMDB, PT e PSDB, teriam chegado a um acordo sobre a adoção do sistema eleitoral de lista fechada nas eleições para os chamados cargos proporcionais, de deputado federal, estadual e distrital e de vereador.

Em face da conjuntura, marcada pela divulgação da Lista de Janot, envolvendo personagens de muitos partidos - a maioria dessas figuras ligadas a algum desses três grandes -, logo alguns jornalistas e analistas passaram a afirmar que essa inovação tem o propósito de "esconder" na lista fechada os acusados da Lava Jato, e assim viabilizar a reeleição desses parlamentares mediante essa manobra legislativa.

Entendo que essa preocupação não tem fundamento na realidade.

Em primeiro lugar porque os cargos do Poder Executivo, Presidente, Governador e Prefeito - além do cargo de Senador - os chamados cargos majoritários, não são e não serão eleitos em lista, nem aberta nem fechada, e seguirão sendo objeto do voto individualizado da cidadania. Nada muda a esse respeito. Esses são cargos muito importantes.

Em segundo lugar porque a lista fechada não é secreta ou clandestina, mas pública, e todos a conhecem, ou podem conhecê-la, e saber em quem estão votando, ou ter a oportunidade de saber.

Em terceiro lugar (e essa é a distinção especial da realidade brasileira) é que a lista fechada de cada partido concorre às eleições para deputado federal e estadual ou distrital em vinte e sete circunscrições diferentes. Na verdade, serão vinte e sete listas de cada partido. Cada uma dessas listas terá um primeiro nome, um cabeça de lista que é quem vai dar "cara" a essa nominata partidária.

Pode ser que venhamos a ter no Estado de São Paulo, por exemplo, a Lista do PT/Fernando Haddad; a Lista do PSDB/Tripoli; a lista do PR/Tiririca; a Lista do PRB/Celso Russomano, a Lista do Solidariedade/Paulinho da Força, etc., etc. Ou seja, o eleitor terá fácil acesso aos nomes dos primeiros integrantes das principais listas e poderá saber, se quiser, a lista inteira do Partido que ele escolher.

Ao lado disso, na quase totalidade dos estados, cada partido deve eleger o primeiro nome da lista e mais uns poucos - bem poucos - pois o número de deputados por estado não permitirá que um partido alcance, por exemplo, dez deputados eleitos, isso em pelo menos vinte dos vinte e sete estados.

Mesmo no Estado de São Paulo, onde são eleitos 70 deputados federais, nenhum partido deve eleger um número de deputados federais superior a uma dúzia. Mesmo o PSDB e o PT terão dificuldade de alcançar esse número. Nos demais estados, então, o número de deputados eleitos em cada partido dificilmente pode chegar a meia dúzia.

Isso significa, em termos práticos, que o Partido que tiver o propósito de esconder um candidato queimado, ou um candidato "mala" indiciado ou denunciado em face da Operação Lava Jato, do Petrolão ou de qualquer outra investigação criminal, em sua Lista terá imensas dificuldades, e não apenas porque os adversários, a mídia e as redes sociais irão denunciar, como aliás deve ocorrer.

É que se o candidato alvo da Lava Jato ou congênere for o primeiro nome da Lista, ou um dos primeiros, ele vai queimar sua Lista e prejudicar o seu Partido e todos os demais candidatos, seus companheiros de legenda. Caso, entretanto, ele seja situado em um lugar distante dos primeiros lugares, não evitará por isso as denúncias, mas ainda assim vai prejudicar o seu partido e, pior (ou melhor), dificilmente será eleito.

Tudo isso seria diferente, evidentemente, se a Lista Partidária brasileira fosse nacional, como ocorre na Alemanha e em alguns outros países europeus. Nesse caso mesmo o ocupante de um lugar entre 40 e 50 da Lista de um grande partido poderia ser eleito. Mas não deve ser assim, uma vez que para tal, teríamos que mudar a Constituição.

Em outras palavras, os líderes partidários da Câmara dos Deputados, pouco importa se movidos pelas melhores razões ou por razões inconfessáveis, podem estar promovendo um interessante aperfeiçoamento institucional na legislação eleitoral brasileira.

Os bastidores informam que a Lista fechada deverá ser acompanhada da proibição de coligações nas eleições proporcionais, o que em si constitui uma cláusula de barreira considerável; e do financiamento público das campanhas, o que pode gerar críticas da mídia e na sociedade civil.

Talvez fosse razoável, nos planos político e técnico, que a Lista Fechada não fosse bloqueada, ou seja, que a ordem definida pela Convenção do Partido - ou por sua Comissão Executiva - pudesse ser alterada pelo eleitor. Um candidato situado no meio da Lista poderia por esse tipo de sistema ser "promovido" para os primeiros lugares caso o eleitor, após votar no partido, escolhesse também votar em um candidato determinado.

Isso implicaria, entretanto, um pouco mais de tempo para o eleitor votar, um pouco mais de complexidade para o processo de apuração e certamente alguma dificuldade para a cidadania compreender porque um candidato situado em terceiro lugar da Lista foi "rebaixado" e outro, com votos individuais foi "promovido". Talvez a adoção da Lista Fechada flexível, não bloqueada, deva ficar para um segundo momento. Mas é uma solução institucional mais interessante.

O que importa, no presente momento, é compreender que, por causa da crise do Petrolão, revelada na Operação Lava Jato, o sistema eleitoral brasileiro pode ser aperfeiçoado em benefício da cidadania e da verdade eleitoral. E não se estranhe o fato de o sistema eleitoral ser modificado em situação de crise e de debilidade do Congresso: são as situações de crise que permitem essas mudanças, elas não ocorreriam se tudo estivesse bem.

Reforma políticas são produzidas em situações de crise ou de impasse político. Caso tudo estivesse bem, ou caso tudo venha a ficar bem, ou mesmo numa situação estável, não haverá reforma política alguma. Esperar um novo Congresso isento de quaisquer problemas é desconhecer essa realidade (além de desprezar o famoso ensinamento de Ulysses Guimarães).

Vemos aqui, nesta apreciação das coisas, que o propósito de esconder os acusados da Lava Jato nas Listas Partidárias do novo sistema tem as aparências do chamado crime impossível, como o que prevê o Código Penal (art. 17), pelo qual "não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime". Nesse caso, o que se apresenta, aparentemente, é a ineficácia absoluta do meio utilizado para a prática do suposto delito. Mas isso, claro, se poderá comprovar em outubro de 2018.

Adotado o novo sistema, com a proibição de coligações, caberá uma importante reflexão para os partidos pequenos de expressão nacional (como o PPS, o PV, o PRB, o PSC, o PCdoB), e mesmo para os partidos médios (como o PSB, o PDT, o PSD e o PP): será muito difícil alcançar o quociente eleitoral em mais de metade dos estados brasileiros.

Lembremos que o quociente eleitoral para deputado federal - que constitui verdadeira cláusula de barreira - já está em vigor com o sistema atual. Ele se revelará muito elevado na maior parte dos Estados caso sejam proibidas as coligações, caso em que será exigido de cada partido isoladamente.

Será de 12,5% (doze e meio por cento) dos votos válidos nos estados representados por oito deputados federais: Roraima, Amapá, Acre, Rondônia, Tocantins, Sergipe, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal e Rio Grande do Norte. De 11% dos votos em Alagoas, que conta com 9 federais, e de 10% no Espírito Santo e no Piauí, que contam com 10 federais. Na Paraíba, que tem 12 federais, seria de 8,33%

Nos demais estados esse quociente vai baixando à medida em que aumenta o número de deputados federais, mas segue elevado nos estados representados por 16 federais, como Santa Catarina, onde será de 6,25%.

Mantidas as atuais representações estaduais na Câmara dos Deputados, o quociente eleitoral, ou a nova cláusula de barreira com o fim das coligações, será de 5,88% no Pará e em Goiás, 5,56 no Maranhão, 4,55% no Ceará e 4% em Pernambuco.

A nova cláusula de barreira que o fim das coligações instituiria somente inferior a 4% em seis estados: 3,33% no Paraná, 3,23% no Rio Grande do Sul, 2,56% na Bahia, 2,17% no Rio de Janeiro, 1,89% em Minas Gerais e 1,43% em São Paulo. Entretanto, mesmo nesses estados poderá não ser fácil para um partido não coligado, em um pleito no qual poderão concorrer mais de trinta partidos.

Em face desse quadro, poderá surgir um novo momento na vida dos partidos políticos brasileiros, que provavelmente irá importar fusões e incorporações partidárias, para que pequenos e médios partidos venham a constituir uma nova formação partidária que tenha condições de disputar as eleições federais em contexto de proibição de coligações. Esse pode ser outro efeito de uma reforma dessa natureza: sanear o quadro partidário.

Cabe-nos apreciar se as medidas legislativas ora cogitadas aperfeiçoam o sistema eleitoral e partidário brasileiro, e não se os seus autores estão movidos por esse ou aquele propósito.

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Arlindo Fernandes de Oliveira é advogado e consultor legislativo do Senado Federal nas áreas de direito eleitoral e constitucional.

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Mudanças na legislação eleitoral e a eleição municipal
O impeachment, Antígona e Creonte



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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