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Sonetos ingleses

Florisvaldo Mattos - Novembro
 


Lavoura fatal com górgonas

As portas e as janelas, tristemente,
Miravam serrania e verdes pastos.
Assim como derrete campos vastos,
O sol na tarde insulta rosto ardente.
Sou um homem de outrora. Estes meus braços,
Que atravessaram matas, montes, rios,
Na aura vertiginosa dos plantios,
Carregam a memória de balaços,
Que hoje não denuncia a mão deserta.
Cacau, um deus que chega e arreia a mala,
Vindo de México ou de Guatemala,
Amor ao ferro, só, nenhum alerta.
       E quando as intempéries regurgitam,
       São os céus vingativos que vomitam.

Entre mar e flora 
Dum nos fata sinunt, oculos satiemos amore*
                           Sexto Propércio (c. 47-15 a.C.)
 
Procuro-te; não sei por onde andas
(Se no tempo dos bondes, saberia).
Miro o mar, a rua jamais vazia.
Distrais-te com sóis; outras varandas
De luz acolhem o teu corpo claro.
Moves-te entre nuvens de carinhos.
Tu pisas e arrebentas os espinhos,
E a flora não te deixa em desamparo.
Tensos lábios em boca, como bordas
De um rio, de ti escorrem suavidades.
Entre ginástica e excentricidades,
Os pássaros acordam, quando acordas.
       No teu encalço, a tarde toda turva,
       Compraz-me te mirar, de curva em curva.
 
* Enquanto os fados nos permitem, no amor saciemos nossos olhos.

Enquanto a noite vai-se

Pelo sol da manhã, muitos me viram;
Da terra, pelo sal, outros me acharam.
É sempre belo o dia, quando lírios
Tiveram chão e luz e não murcharam.
Já um dia foste noite de meu bem;
Nem por isso fiquei embaraçado.
Pior foi quando vi, ali e além,
O nada que restou de meu passado.
Noite, por que te vás? Quero-te perto
Do pouco que de mim ficou na estrada.
Em tudo que me foi pranto e deserto,
Não me verás chorar água passada.
       Um deus passou correndo na clareira.
       Não vi, porque dormi a noite inteira.

Sem as cordas de aço
                    Para Durval Burgos

Trêmulas folhas a cantar modinhas,
Que ele anotava para o seu violão;
Seja de flores ou de ervas daninhas,
É assim que se compõe uma canção;
Ou da água venha no sabor da espuma,
Ou de um demônio de pernas roliças;
Vencendo o mar, que acende o sol na bruma,
Seja o começo de infindáveis liças;
Beijando a pedra que sobrou da tarde,
O mar revolto já se foi embora.
A jornada de sons pela noite arde,
Tantas notas armou com vento e flora.
       Na esperança de outra manhã mais doce,
       Dedilha a pedra qual se cordas fosse. 

Ecos de mim mesmo 

De tanto ler compêndios de arte vária,
Um dia pensei que a Morte é que me acalma.
Esta literatura funerária
Me fez perder os dias de minha alma.
Saio e abro então as portas do outro mundo,
Pondo-me entre deserto e mar bravio.
Quando me torna à terra o mar profundo,
Soa dentro de mim um sol de estio.
Glacial sempre, em seus pormenores duros,
O tempo me fizera cauteloso,
Ausentando de mim os meus futuros.
Se vezes me senti pouco operoso,
    Entre nuvens passei, tomei o visto:
    Tenho nome, sou gente; enfim, existo.

Sintático verão travesso 

Calmo, um dia empenhei-me em ler o mar.
O mar me rogava que não o lesse.
As ondas eram para mim palavras;
As espumas, sílabas sobre a areia.
Mirava o céu, as aves confirmavam,
Pelo próprio som que elas imitavam.
O mar ardia e me recriminava,
E me mandou que consultasse os peixes.
Lá fui, e mergulhei por entre rochas.
A um que passava de fulgente escama
Instei se o mar, de tarde ou de manhã,
Não escondia um cabedal de histórias.
       Manda-me o peixe que regresse à areia.
       Lá, estirada, me aguarda uma sereia.


Florisvaldo Mattos, professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, também exerceu o jornalismo, como editor-chefe do Diário de Notícias e A Tarde, ambos de Salvador. Desde 1995 pertence à Academia de Letras da Bahia. Entre seus livros, Reverdor (1965), Fábula civil (1975), A caligrafia do soluço & Poesia anterior (1996), Mares anoitecidos (2000), Poesia reunida e inéditos (2011), Sonetos elementais – uma antologia (2012), Estuário dos dias e outros poemas (2016). Escreveu ainda os ensaios A comunicação social na Revolução dos Alfaiates (1998) e Travessia de oásis – A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa (2004).





Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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