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O novo sindicalismo americano

Luiz Sérgio Henriques - Fevereiro 1998
 

Em 1997, a bem sucedida greve dos trabalhadores da United Parcel Service - empresa responsável por parte considerável do serviço americano de correio - esteve longe de ser um raio em céu sereno. Ela correspondeu, ao contrário, a todo um recém-iniciado movimento de recuperação do sindicalismo norte-americano após muitos anos de derrotas, em decorrência da perda de capacidade contratual, do declínio do número de filiados, de mudanças na composição da força de trabalho e, fundamentalmente, da implacável ofensiva patronal e governamental que marcou a era Reagan-Bush e, tendo assumido dimensão global, ainda não dá sinais de querer deter-se. (De passagem, aliás, cabe uma "provocação": quem foi mesmo que decretou o fim da luta de classes?)

A novidade a anotar é que o sindicalismo americano parece ter encontrado um caminho promissor . E pode ser que nos acostumemos em breve com nomes como os de John Sweeney, Rich Trumka e Linda Chaves Thompson, significativos de um novo protagonismo do trabalho nos processos de transição que afetam não só os Estados Unidos como o mundo todo - o Brasil incluído. E daí a importância deste registro também para nós .

Sweeney e seus companheiros compõem a liderança da AFL-CIO desde 1995. De cara, significaram uma renovação considerável do grupo dirigente dessa confederação sindical, afastando-a, por exemplo, de vinculações próprias da Guerra Fria, quando a AFL-CIO sustentava programas externos de expansão de um sindicalismo anticlassista, freqüentemente comprometido com soluções "moderadas" que reconheciam a supremacia dos interesses do capital. Não raro, aliás, tais programas contavam com o suporte mais ou menos encoberto do empresariado e de organismos menos recomendáveis, como a CIA.

Já neste ponto abrem-se possibilidades inéditas de um diálogo entre as forças representativas do trabalho, tanto norte-americanas quanto latino-americanas, num horizonte marcado por temas como a possível constituição da área de livre comércio das Américas, a nova mobilidade do capital nos espaços econômicos além das fronteiras nacionais, as exigências de "desregulação" e "flexibilização" invariavelmente sugeridas pelas políticas de ajuste liberal. Em toda esta conjuntura têm faltado sistematicamente representantes dos setores subalternos: internacionaliza-se o capital, mas os sindicatos ainda se mantêm basicamente confinados no âmbito nacional, numa atitude de antemão condenada à derrota.

Mas não é só externamente que a renovação do sindicalismo da AFL-CIO se revela importante. Na análise da própria situação dos trabalhadores americanos, o grupo dirigente reunido em torno de Sweeney é bastante duro: não obstante a euforia que tem cercado a economia dos Estados Unidos nos anos 90, os altíssimos lucros registrados por suas empresas, a exuberância da corporate America - não obstante isto, os indicadores mostram aspectos preocupantes no tocante à concentração de rendas, à deterioração das condições de trabalho, à degradação da rede de proteção social construída a partir do New Deal rooseveltiano até a "grande sociedade" dos anos Kennedy-Johnson.

America needs a raise - um aumento generalizado de salários é o de que precisa a América, diz o título de um livro recentemente publicado por Sweeney. Mas não só, evidentemente. Trata-se, na verdade, de dar partida a um gigantesco processo de organização sindical dos que permanecem desorganizados: o imenso contingente dos trabalhadores de baixos salários, não raro ocupando empregos temporários, em tempo parcial ou "terceirizados". Trata-se ainda de responder à enorme diversidade que veio a assumir a força de trabalho nas condições da "acumulação flexível", registrando a presença crescente da mulher, dos chicanos, dos imigrantes asiáticos e de outras procedências - além, obviamente, dos negros - nos estratos assalariados mais mal pagos.

Estes estratos, de resto, constituem o setor de maior crescimento de empregos na economia americana. Neste setor, ainda, é que se desatam os efeitos mais perversos decorrentes da intensificação das horas de trabalho e da diminuição de direitos sociais, traços que visivelmente caracterizam o capitalismo quase vitoriano que se tem querido impor como inevitável neste fin-de- siècle cheio de incertezas - mas de inesperadas possibilidades também.

Talvez seja cedo para fazer considerações de maior alcance político ou mesmo teórico. De qualquer modo, as novidades americanas são atraentes. As teorias do fim do trabalho pode ser que tenham sido um pouco exageradas, à luz de iniciativas como a da reorganização do sindicalismo nos Estados Unidos e da surpreendente realidade social que ela descobre. Quem sabe ainda caiba às forças do trabalho um significado universal na refundação de uma esquerda democrática para o século XXI, superando - no velho e bom sentido de criticar e retomar em nível superior, sem negar sumariamente - tendências excessivamente valorizadoras de lutas particulares, fragmentárias, que terminam por aceitar o quadro de uma sociedade que afinal permanece com os mecanismos da desigualdade substancialmente intocados. Este artigo já estava redigido quando, no Fórum da Economia Mundial, em Davos, Sweeney veio a participar de uma mesa redonda com o presidente Fernando Henrique Cardoso, o megaespeculador George Soros e o vice-presidente da Comissão Européia, Leon Brittan.



Fonte: O Tempo, Belo Horizonte, 7 fev. 1998.

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