Em artigo nesta página (20/4), Fernando Gabeira tratou de um tema essencial aos candidatos à s próximas eleições presidenciais: ganhar ou perder votos. Não aconselhou estratégias, mas advertiu ser preciso pensar na principal personagem desta eleição, a sociedade, traumatizada pela violência ou pela deriva de seus antigos lÃderes.
O tema objetivo dos candidatos configura-se como algo um pouco mais complexo para a sociedade. Importante seria pensar o que é ganhar ou perder para a sociedade. Uma vitória eleitoral não define tudo e tampouco uma derrota eleitoral se torna obrigatoriamente uma derrota histórica. A luta pela democracia e ela mesma não se resumem a números. Mais do que a conquista do voto - que tem toda a importância -, é preciso verificar, junto à sociedade e em nome dela, que tipo de vitória ou derrota os contendores estão dispostos a vivenciar.
A virtù de um candidato e de sua corrente polÃtica estaria na justa relação entre a conquista do voto e a perspectiva histórica que os anima. Trata-se de uma complexa construção histórica que demanda leitura competente da realidade, orientação ampla capaz de agregar diversos setores, além de tenacidade, paciência, prudência e vigor, até alcançar o objetivo final.
A tÃtulo de exemplo, em determinadas circunstâncias, a vitória pode advir e superar uma derrota anterior, de caráter histórico. Nesse caso, é possÃvel verificar a trajetória de atores polÃticos vitoriosos que conseguiram superar equÃvocos de orientação estratégica e, num contexto mais favorável, refizeram seus caminhos e compuseram alianças capazes de lhes dar condições de crescer, não importando os mecanismos adotados para enfim alcançarem seus objetivos.
Essencialmente, essa foi a trajetória dos "companheiros de armas" do PT, que nas décadas de 1960 e 1970 optaram pela luta armada e depois, sem autocrÃtica pública, diga-se, conseguiram chegar ao poder na aurora do novo século. A vitória eleitoral desse grupo, como sabemos, não se configurou como uma vitória histórica e orgânica. O ex-ministro José Dirceu, condenado em diversos crimes de corrupção, assim como Dilma Rousseff, afastada da Presidência da República por um processo de impeachment legÃtimo e legal, são hoje expressões residuais que nem no PT recebem a guarida devida, para além da retórica de praxe.
Ao contrário desses personagens, então vitoriosos, que não produziram mais do que um "pensamento curto" sobre o PaÃs, houve aqueles que, derrotados por um golpe verdadeiro (1964), foram fecundos na leitura a respeito do esgotamento do regime militar, que adviria paradoxalmente do seu êxito, como escreveu Armênio Guedes, em 1971, e construÃram a grande estratégia que orientou as oposições a derrotarem o autoritarismo em meados da década de 1980.
Vitoriosos na sua estratégia polÃtica contra a ditadura, os comunistas do PCB foram derrotados ao serem tragados pelas mudanças do tempo histórico e pela inação de um grupo dirigente incapaz de acompanhá-las. Não é o caso aqui de apresentarmos, nem sequer sumariamente, as razões da derrota. Mesmo porque as razões da vitória, provisória e invertebrada, daqueles que alcançaram o poder em 2002 ainda estão mergulhadas em enigmas que aos poucos as instituições da democracia brasileira vão decifrando.
Em meio a vitórias efêmeras, derrotas amargas, frágeis avanços e oportunidades perdidas, o PaÃs vive uma democratização falhada que compõe o pano de fundo da crise atual. A "polarização patológica" entre PSDB e PT, nas palavras de Luiz Sérgio Henriques, acabou se transformando num método, em desserviço ao PaÃs. E isso precisamente num momento em que era possÃvel que se desencadeasse entre nós uma acumulação histórica de cultura cÃvica jamais vivenciada. Reitera-se, por assim dizer, a cena observada por Luiz Werneck Vianna ao se referir à transição democrática da década de 1980 como "um processo em busca de um ator". De fato, na resistência ao autoritarismo nos unimos, assim como no inÃcio da transição, que terminou com a fragmentação das forças democráticas para, por fim, na democracia, nos enredarmos numa polarização nefasta, improdutiva e paralisante.
Talvez não seja correto dizer que, como paÃs, estejamos condenados a perder sempre, mas é tenebroso anotar que os avanços democráticos alcançados até agora estão sob risco diante de uma polarização que não cede e se reconfigura em novos termos. É verdade que um dos polos, o PSDB, desapareceu enquanto tal, mas o que ainda martela o "nós contra eles" permanece e se radicaliza ao buscar convencer a sociedade de que só o seu retorno ao poder é capaz de dar uma alternativa ao PaÃs. E isso depois do desastre da recessão e do desemprego promovido por eles, além da prisão por corrupção dos seus principais lÃderes. É espantoso!
Recentemente, contudo, o cenário se remodelou com o surgimento de um novo polo que atravessa a sociedade civil e a opinião pública, impactando milhões de pessoas. É um polo bifronte, uma espécie de Janus disforme, fundado no republicanismo que emergiu no contexto das manifestações de 2013 e, em especial, das que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. Uma de suas vertentes é o rechaço à polÃtica e aos polÃticos em geral. A outra persegue o bem comum em luta antagônica à corrupção. A primeira derivou do antipetismo e se espraiou como antipolÃtica. A segunda expressa o sentimento difuso de milhões e não se desconecta das instituições democráticas. Por meio delas trava sua batalha ética, mas ainda guarda um desprezo pela polÃtica. Não se configura como uma expressão partidária e talvez não se deva mesmo esperar isso dela.
Há visivelmente uma cultura polÃtica autoritária transversal aos dois polos ou a parte deles, enquanto a cultura democrática, ainda frágil entre nós, busca permanecer viva na expectativa de candidatos e votos.
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Historiador, professor titular da Unesp
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