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A que herança renunciamos?

Hamilton Garcia de Lima - Agosto 2018
 



Do socialismo científico ao socialismo mítico

O título do artigo é uma referência ao texto do revolucionário socialista russo Vladimir Lenin escrito em 1897, no qual ele, à semelhança de Marx e Engels em A ideologia alemã (1846), procurava situar a luta socialista nos marcos do realismo empírico (socialismo científico) -, ou seja, da modernidade fundada, a duras penas, nas révolutions citoyens dos séculos anteriores -, em oposição ao idealismo romântico (socialismo utópico) predominante na esquerda da época.

Se no trabalho de Marx & Engels [1] o foco era o idealismo crítico da esquerda alemã, que acreditava ser possível combater "o mundo real lutando contra a ‘fraseologia do mundo’", numa "luta filosófica contra as sombras da realidade" - de novo em voga no séc. XXI -, no de Lenin o alvo é a crítica populista ao capitalismo, que se transformara em repulsa ao desenvolvimento e em apologia à comunidade rural originária russa [2].

Enquanto nossos autores alemães [3] refutavam seus filósofos por não terem se lembrado "de procurar a conexão da filosofia alemã com a realidade alemã, a conexão de sua crítica com o seu próprio ambiente material", o russo condenava os populistas por ignorarem as mudanças causadas pelo capitalismo na realidade rural da Rússia, mantendo uma visão romântica do campo e, assim, fazendo "o jogo da estagnação e de toda sorte de asiatismos". Os populistas comparavam "sempre a realidade do capitalismo com a ficção do regime pré-capitalista", daí concluindo pela superioridade do segundo - o que hoje fazemos em benefício dos povos naturais e das populações vulneráveis.

O que animava a corrente realista da esquerda, desde o Manifesto comunista (1848), era a ideia de que "[…] não é possível conseguir uma libertação real a não ser no mundo real e com meios reais; […] não é possível abolir a escravatura sem a máquina a vapor e a mule-jenny (fiação automática), nem a servidão sem uma agricultura aperfeiçoada […]. A ‘libertação’ é um fato histórico, não um fato intelectual, e é efetuada por condições históricas, pelo nível da indústria, do comércio, da agricultura".

Deriva disso que a revolução socialista só poderia ser obra de uma sociedade evoluída, em que a divisão do trabalho estivesse suficientemente avançada, o acúmulo de riqueza e cultura, elevado, e a forma de existência há muito tenha deixado de ser local. Do contrário, diziam nossos alemães, "só a penúria se generaliza e […] a miséria recomeçará a luta pelo necessário e se cairá de novo na imundície anterior".

Foi precisamente a não observância desse limite real à mudança social (revolução), levando longe demais a ideia de "revolucionar o mundo existente", que levou o socialismo crítico ao colapso. Se, na Comuna de Paris (1871), Marx apoiara os trabalhadores por se tratar de um gesto extremo numa situação extrema - sabendo da impossibilidade de qualquer socialismo naquelas condições -, Lenin, ao provar a possibilidade (e necessidade) da revolução popular na Rússia (outubro de 1917) para garantir qualquer progresso democrático ao país, acreditou ser possível, por isso mesmo, estender o poder popular à esfera econômica, sem maiores considerações acerca da capacidade da classe trabalhadora - já em pleno taylorismo - de gerir a moderna empresa. Conhecem-se as desastrosas consequências, entre elas: a guerra civil, o colapso da produção industrial e agrícola, bem como a consequente anomia social, que levou à hipertrofia do Estado e à supressão das liberdades públicas.

Desde então, já sob o stalinismo - que foi a reação da nomenklatura soviética à tentativa de Lenin, com a NEP, de reverter a tragédia -, o racionalismo socialista foi posto a serviço da mais perversa das formas idealistas de todos os tempos: o marxismo-leninismo, ideologia do superleviatã despótico para a realização da utopia comunista. Tal ideologia mostrou-se capaz de fazer tabula rasa de qualquer abordagem empírica honesta e, pior, usando para tal os maiores inimigos da utopia (Marx, Engels e Lenin), em nome dos quais - com o uso arbitrário e abusivo de seus textos, sacralizados - se constituiu a mais fantástica máquina de narrativas fraudulentas da história, à guisa de redenção revolucionária, representada pelo jornal Pravda (Verdade).

Iludem-se os que pensam que este cruel processo degenerativo do socialismo científico, transmutado em socialismo mítico, tenha se esgotado junto com seu mais célebre idealizador-protagonista (Stalin) ou sua mais iminente criatura (Estado-partido). Na verdade, seu ocaso inaugurou uma nova era de mistificações na esquerda, agora não mais sob a roupagem do comunismo, mas do humanitarismo, que, aditivado pelas interpelações pós-modernas de matiz norte-americana (identidades, lugares de fala, etc.), nos leva, sem mais mediações, da razão à emoção e, dependendo do contexto, à comoção, num agir comunicativo que não só prescinde da análise histórica rigorosa e da própria ciência natural, como exige seu abandono em nome de um novo puritanismo ético, de caráter laico-utópico, muito mais amplo e persuasivo do que o comunismo.

É impossível separar o homem de sua natureza histórica e de sua história natural - natureza esta que é a base de sua própria existência -, já haviam nos ensinado os alemães, mas a "nova esquerda" não se contentou em suplantá-las - aniquilando, por tabela, o legado de Morgan e Darwin; ela também libertou a própria ideia humanitária de qualquer determinação complexa para torná-la apanágio exclusivo de uma "vontade política" personificável.

Não é por outro motivo que complexas antinomias se transformaram em simples paradoxos na verve de lideranças prestidigitadoras, capazes de, em frases curtas e penetrantes no nível do subconsciente, ressignificar a conexão entre economia e política, de modo a possibilitar a mais ampla e discricionária liberdade da última sobre a primeira - maximizando o pecado original leninista.

"Se, ao final de meu mandato, cada brasileiro puder se alimentar três vezes ao dia, terei realizado a missão de minha vida", disse Luiz Inácio Lula da Silva, a maior liderança política da esquerda brasileira desde a redemocratização, ao tomar posse em 2002. Não mostrava maiores preocupações com o fato de que o capitalismo nativo havia sido capturado pela "doença holandesa" (rentismo) e que a realização de seu sonho - mais do que justo, inadiável - não seria sustentável sem reformas econômicas que visassem, mais que o consumo das famílias - perspectiva de curtíssimo prazo dos liberistas -, os investimentos produtivos capazes de criar empregos e produtos. E isto além de reformas políticas que pusessem fim ao domínio neopatrimonial sobre o Estado, que, junto com o setor financeiro, se constituem em verdadeiros "devoradores de mais-valia" ou, em outras palavras, parasitas dos excedentes que deveriam sustentar a economia pública e privada de todos.

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Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da Uenf/Darcy Ribeiro

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Notas

[1] K. Marx e F. Engels. Ideologia alem㠖 crítica da filosofia alemã mais recente nos seus representantes Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner e do socialismo alemão nos seus diferentes profetas. São Paulo: Centauro, 2006, p. 11-2, 15.

[2] V.I. Lenin. "¿A que herencia renunciamos?". In Id. Obras escogidas, 1. Moscú: Progreso, 1979, passim.

[3] K. Marx e F. Engels, cit., p. 15.

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A democratização do Estado
A evolução da esquerda – 1
A evolução da esquerda – 2
A evolução da esquerda – 3
A evolução da esquerda – 4






Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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