Desde 2013 a sociedade brasileira vem sendo impactada pela antipolÃtica. Por diversas formas, um sentimento negativo em relação à polÃtica foi se avolumando até atingir o coração da disputa eleitoral de 2018. O que era latente acabou sendo promovido a uma espécie de paradigma, moldando uma verdadeira revolta da sociedade contra a polÃtica.
Da erosão do sistema de representação avançou-se celeremente para o rechaço integral à atividade polÃtica, considerada nosso grande mal. Capturada pelo sistema de Justiça, a corrupção sistêmica que se realizou durante os governos petistas, promovida pelo partido majoritário e por seus aliados, é considerada sua causa maior. Mas é necessário incluir aà o até então principal partido de oposição ao PT, o PSDB, que não ficou distante desse descalabro, como vem sendo comprovado dia após dia.
No processo eleitoral recente, a antipolÃtica assumiu o papel de irmã gêmea do antipetismo, ampliando sua negatividade para a esquerda, a social-democracia e mesmo para a democracia. O rechaço acabou se espraiando, fazendo emergir até um anti-intelectualismo que levou de roldão intelectuais, artistas e jornalistas, especialmente aqueles que tiveram algum protagonismo na sociedade desde os anos da redemocratização. Todos passaram a ser vistos como atores contaminados pela corrupção ou por interesses mesquinhos ou mesmo partidários.
A antipolÃtica estabeleceu, independentemente da cor ideológica de quem a vocalizava, uma solução impostergável: a ideia de que sem mudar, já e radicalmente, não haveria alternativa para o PaÃs. E mudar significava deslocar a "velha classe polÃtica" e pôr em seu lugar "o novo", o que quer que isso pudesse significar.
Essa narrativa de condenação dos últimos 30 anos sustentou a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (PSL) e de alguns governadores de Estado que, aparentemente, surgiram do nada, selando a reviravolta. Em cinco anos se passou da consigna "sem partido" à sedução generalizada de seleção das novas elites governamentais em setores externos à polÃtica organizada, chegando ao extremo de um governador eleito pretender encaminhar a escolha dos quadros de primeiro escalão por meio de empresas headhunter.
O casamento da antipolÃtica com o pensamento que sustentou regimes totalitários não é raro na História. Não há como negar que o pensamento marxista, desde suas origens e na vigência do chamado "comunismo histórico", expressou uma fragilidade intrÃnseca em relação à polÃtica, em especial à polÃtica democrática. Por outro lado, é largamente conhecida a ojeriza do nazismo à polÃtica tout court. A assertiva de J. Goebbels, para quem os partidos seriam o grande mal, já que eles "vivem dos problemas da polÃtica e não buscam resolvê-los", não deixa dúvidas. Ambos exemplificam a temeridade incrustada em opções estratégicas sustentadas na antipolÃtica.
Cenários de crise e de degradação favorecem a antipolÃtica na conquista de espaços de poder. Na Europa, por exemplo, a crise da democracia tem origem no colapso fiscal do Estado de Bem-Estar Social, concomitante ao avanço da globalização. Isso propagou uma onda negativa de questionamento dos Estados nacionais e depois da União Europeia. A crise da democracia transformou-se, então, numa crise da polÃtica. É aà que surgem os atores da antipolÃtica do nosso tempo, chamados de forma ligeira de "populistas".
O problema é, contudo, mais profundo e complicado. Envolve aspectos essenciais a respeito da crença na democracia e em suas possibilidades de reinvenção. O pano de fundo de onde emerge a antipolÃtica é, na verdade, a "não realização" da democracia aos olhos, ouvidos e ao coração dos cidadãos. Isso porque, como demonstrou Tocqueville, a democracia quer garantir a todo ser humano tudo o que se deseja, teoricamente sem nenhum limite – essa a sua "promessa". Contudo, ela funciona unicamente se os desejos estiverem dentro de certos limites. Em outras palavras, a democracia constrói e reforma instituições para mediar desejos, apetites e sentimentos para garantir seu funcionamento. Mas, no essencial, empurra os indivÃduos a desejarem para além dos seus limites e assim põe em perigo constante a própria sobrevivência daquele tipo de cidadão que ela não pode dispensar. Em sÃntese, o espectro da antipolÃtica espreita permanentemente o percurso de construção da democracia moderna.
Mesmo numa conjuntura problemática, a democracia tem possibilitado aberturas tanto ao que se poderia chamar de hiperdemocracia (a democracia como critério para tudo) quanto ao hiperpluralismo (uma ampliação ilimitada de sensibilidades que invadem o espaço público). Mas, conforme Giovanni Orsina (La democrazia del narcisismo, 2018), a emergência de uma cultura narcÃsica, ao subjetivar todas as atividades, vem alterando o sentido do individualismo moderno. Essa cultura é uma obsessão baseada na incapacidade de perceber a própria pessoa e a realidade como duas entidades separadas e autônomas, de distinguir o que está dentro do que está fora, em suma, o objetivo do subjetivo.
A repercussão disso na polÃtica é devastadora. O cidadão, o individuo democrático, fechado em si mesmo, passa a não escutar mais, refuta interpretações e avaliações da realidade que venham de fora dele. Sua relação com o mundo é inteiramente determinada pelo filtro de uma perspectiva subjetiva não educada nem amadurecida pelo confronto. Onipotente, é incapaz de imaginar o futuro a não ser como espelho do desejo, sem mediações, avesso à polÃtica.
A irrupção da antipolÃtica nas sociedades contemporâneas, e no Brasil em particular, não pode ser reduzida ao "fantasma do populismo" nem ao maniqueÃsmo do embate entre democracia e fascismo. Recuperar a polÃtica como um desÃgnio moderno, sem polarizações estéreis, é o desafio do tempo presente.
----------
Historiador e professor titular da Unesp
----------
Descaminhos e batalhas do reformismo
A polarização que não cede
Uma esquerda sem conceito
Do antipetismo à antipolÃtica e suas diversas facetas
Dias de espanto