Tempos sombrios os que vivemos, as portas do inferno se abrem diante do nosso olhar descuidado para os perigos a que estamos expostos com uma guerra civil rondando nossa vizinha Venezuela. A dualidade de poder, como registram os clássicos da teoria polÃtica, dificilmente suporta situações de equilÃbrio e tende a desatar conflitos em que um dos polos envolvidos procura eliminar o seu rival, ou por uma solução de guerra civil, ou induzindo a erosão completa das suas bases de sustentação, favorecendo, no melhor dos casos, a intervenção da polÃtica em favor dos setores sociais que se demonstrarem hegemônicos.
O caso venezuelano, em que um grupo opositor ao governo consagrou nas ruas um presidente da República, negando legitimidade ao que está no exercÃcio do poder, conhece a particularidade de que o poder rejeitado de Nicolás Maduro por movimentos sociais e vários partidos polÃticos em grandes manifestações conta com o apoio de instituições estatais, fundamentalmente do aparato militar, até então coeso na defesa do atual governo. Das duas, uma: ou a oposição - hoje amparada por governos poderosos da região, como, entre outros, o americano, o brasileiro, o argentino, e até de paÃses poderosos europeus, num revival dos tempos coloniais - tem sucesso em abalar de tal forma o governo Maduro que o leve à renúncia; ou, alternativamente, apela ao recurso de uma intervenção armada dos seus aliados internacionais, entre os quais o Brasil, a fim de resolver suas questões internas.
Na hipótese de o governo brasileiro optar pela via tresloucada da intervenção militar, diante de uma cerrada defesa militar da Venezuela do seu governo e seu território, vai para a lata do lixo uma tradição centenária da nossa polÃtica externa, inaugurada pelo barão do Rio Branco - não por acaso, nome de avenidas urbanas nas principais capitais do PaÃs -, de conduzir as relações internacionais em paz, por meio de soluções negociadas, empenhada historicamente, nas palavras de Rubens Ricupero em seu monumental A diplomacia na construção do Brasil, em ver nosso paÃs "reconhecido como força construtiva de moderação e equilÃbrio a serviço da criação de um sistema internacional mais democrático e igualitário, mais equilibrado e pacÃfico" (Versal, 2017, página 31).
Tradições nacionais enraizadas como as da nossa polÃtica externa não se deixam cancelar por atos de vontade, elas conformam a nossa segunda pele, embora estejam em risco sob a condução do atual chanceler, que pretende conduzi-la com o espÃrito de cruzada do que entende, por questões metafÃsicas, ser uma luta do bem contra o mal. Não se pode afastar a possibilidade de que nuestra América, este extremo Ocidente, nas palavras do cientista polÃtico francês Alain Rouquié, seja arrastada, à falta da presença de paz e de uma polÃtica de negociação nos conflitos da região que o Brasil sempre representou, para o Oriente polÃtico por polÃticas desastradas que nos conduzam à guerra.
Nesse caso infeliz, a ressurgência da guerra fria dos anos 1950, já em curso, encontraria seu novo ponto quente na América Latina, como se faz indicar na forte contraposição entre Estados Unidos, Rússia e China e seus aliados sobre a questão da Venezuela.
A entrada em cena de paÃses europeus, como Espanha, Alemanha, Reino Unido, França e Portugal, ao apresentarem um ultimato ao governo de Maduro para que convoque novas eleições presidenciais no prazo de oito dias, sob pena de reconhecerem o governo do seu opositor Juan Guaidó, dramatiza ainda mais o conflito venezuelano, que assim escala definitivamente da dimensão regional para a mundial. Ignorado esse ultimato, uma guerra civil com participação de forças externas pode escapar de cálculos de gabinete para se tornar possÃvel.
Uma vez que ainda estamos no terreno das especulações, digamos que Nicolás Maduro queira emular - e tenha estofo pessoal para tanto - o destino trágico de Salvador Allende, e, se for o caso, defender seu governo de armas na mão, vindo a ser eliminado fisicamente. Sua remoção do governo, distante de uma operação de precisão cirúrgica, pode precipitar uma guerra civil com evidente potencial para se expandir ao longo das suas fronteiras nacionais, entre as quais a brasileira.
Essa possibilidade terrificante, que não é de laboratório, ainda pode ser afastada com o pronto retorno da polÃtica externa brasileira ao seu leito historicamente comprovado pela experiência acumulada dos seus estadistas. Se as palavras ainda valem, o fato de a advertência de que devemos ser fiéis à s nossas tradições de não intervenção na polÃtica dos paÃses vizinhos ter vindo do vice-presidente da República, o general Hamilton Mourão, e não dos próceres da nossa polÃtica externa, acende um ponto de luz a ser estimulado.
Quando vista comparativamente no cenário do subcontinente, a formação do nosso Estado e da sua polÃtica é a mais robusta confirmação do gênio polÃtico dos próceres que estabeleceram seus fundamentos. O caudilhismo, tão presente na polÃtica dos nossos vizinhos, não encontrou aqui lugar propÃcio e, sobretudo, realizamos a obra-prima da unidade territorial, ao contrário da balcanização dos paÃses hispano-americanos. Soubemos ainda preservar as instituições polÃticas comprometidas com os ideais civilizatórios declarados pela nossa primeira Constituição, sob inspiração do estadista José Bonifácio.
Com essas credenciais fomos reconhecidos como capazes de mediação nos conflitos regionais, com ênfase nas negociações polÃticas em favor de soluções pacÃficas. A presença afirmativa do Brasil, garante de equilÃbrio no subcontinente, não deve e não pode se comprometer por polÃticas de ocasião que transfiram sua soberania a potências externas a nós, sejam quais forem, em suas disputas geopolÃticas e econômicas. Para ficar com palavras da moda, o Brasil acima de tudo.
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Sociólogo, PUC-Rio
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Observatório polÃtico 2019