Certamente próxima do fim, mas sem que se possa excluir como desfecho uma intervenção externa ou uma guerra civil catastróficas, a tragédia venezuelana em curso coloca de ponta-cabeça o mundo tal como o temos experimentado. É verdade que parte da esquerda global - seria mais apropriado falar de extrema esquerda - permanece irredutÃvel na defesa do que seria uma "revolução nacional e democrática", com todos os seus erros e até crimes, contra a ameaça iminente do "imperialismo", acorrentando-se com cegueira deliberada ao destino da ditadura bolivariana. Não menos verdade é que, dada a gravidade dos acontecimentos, atores como Trump e os que a ele se associam de forma subordinada podem apresentar-se, pelo menos taticamente, como defensores de uma agenda humanitária que raramente, até agora, deram mostras de considerar com seriedade.
Donald Trump, afinal, é o polÃtico que constrói muros, mesmo quando na fronteira se amontoam refugiados de paÃses centro-americanos literalmente devastados pela "guerra à s drogas". E o nativismo que apregoa é versão particularmente grosseira daquele "esplêndido isolamento", uma das vertentes, ainda que não a única, do modo norte-americano de estar no mundo. O nacionalismo que pratica e, ao mesmo tempo, ajuda a difundir entre sócios menores hostiliza instituições multilaterais que, com todas as suas limitações, participam do "governo global" minimamente necessário numa fase histórica em que o mundo objetivamente se unifica, ao menos em termos econômicos, e a interdependência se afirma como possÃvel fator de paz e entendimento.
Naturalmente, há razões geopolÃticas de muito peso no movimento para além da própria fronteira, em direção ao sul do continente. Há motivos econômicos óbvios e há novos aliados ideológicos a ser mobilizados em ordem unida: a conjunção de astros aqui parece muito favorável, pouco depois do encerramento do ciclo dos governos ditos nacional-populares. Mas a justificativa imediata e, em seus termos estritos, rigorosamente defensável, decorre de algo com que governos de direita e extrema direita dificilmente contam, a saber, uma emergência humanitária sem precedentes, acarretada, no caso, pelo colapso do frágil e ruidoso experimento de Chávez e Maduro.
Trata-se, em suma, de uma questão de direitos humanos ferozmente violados por uma ditadura que se apresentava, e se apresenta, como de "esquerda", ainda que tenhamos de ampliar consideravelmente este último conceito para nele incluir expressões acabadas de caudilhismo, militar ou não, tÃpicas da história do autoritarismo latino-americano. Para mencionar uma fonte acima de dúvida, ao tomar posse como Alta Comissária dos Direitos Humanos da ONU, em setembro de 2018, a socialista chilena Michelle Bachelet teve palavras muito duras: em meados do ano passado, o êxodo venezuelano tinha dimensões assombrosas, atingindo até então cerca de 7% da população do PaÃs. Um êxodo causado pelo colapso econômico, pela falta de comida e de remédios, pela perseguição polÃtica pura e simples. Suas origens foram basicamente endógenas e não advieram de sanções ou pressões do poderoso vizinho do norte. Um absurdo drama humano, motivo de profunda vergonha para seus promotores diretos e para aqueles que ao longo de duas décadas lhes deram algum tipo de apoio.
Nenhuma possibilidade, por isso, de evocar o presidente Salvador Allende a propósito de aventureiros. Allende foi homem de Estado, que escolheu morrer com a democracia de seu PaÃs. A diáspora chilena seguiu-se à sua derrubada, diferentemente do drama venezuelano de agora. Por certo, Allende não está acima de exame crÃtico e menos ainda se presta à mitificação infantilizadora. O projeto com o qual passou dignamente à História - a construção do socialismo em regime de liberdades - era certamente inviável num tempo em que a potência dominante não permitiria outra Cuba no continente, embora houvesse distância imensa entre o ethos republicano do chileno e o caudilhismo "nacional-popular" caracterÃstico de Cuba.
Tanto se tratava de personagem de outra envergadura que um destacado lÃder do comunismo histórico - talvez o último - tomou-o como inspiração para escrever sofridamente a propósito do 11 de setembro de 1973. Enrico Berlinguer, refletindo sobre os "fatos chilenos", mostra então plena consciência do papel desempenhado tanto pelo PCI quanto pela Democracia Cristã no segundo pós-guerra. Os dois partidos rivais, que, no entanto, se entendiam e se condicionavam mutuamente, tinham sido praticamente os únicos recursos com que o PaÃs contara para se reconstruir depois dos vinte anos de fascismo e da catástrofe nacional por ele produzida. Por isso, qualquer avanço na conjuntura difÃcil dos anos 1970 só poderia se dar no quadro de amplo compromisso que resguardasse, em primeiro lugar, os institutos democráticos "clássicos".
ImpossÃvel aqui avaliar as peripécias que frustraram generosos propósitos como os de Allende e Berlinguer. De resto, assim será sempre a história dos homens, fadada a não conhecer nenhum fim determinado - nem mesmo o "socialismo" como etapa última e superior -, mas por certo suscetÃvel de equilÃbrios mais justos e valores compartilhados, à medida que se afirmem os processos de democratização próprios da modernidade. A esquerda polÃtica, necessária "apesar de todas as quedas", como no verso de Bandeira, está chamada a refletir impiedosamente sobre os "fatos venezuelanos", sem minimizar as pesadas responsabilidades que recaem sobre parte de si mesma. Da extensão e da qualidade de tal reflexão dependerá a possibilidade de se recolocar coerentemente como fator de justiça e liberdade. Se não o fizer, continuará a deixar o caminho livre para autocratas capazes de manipular emergências humanitárias e redefinir direitos humanos, esvaziando-os de seu extraordinário universalismo.Â
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil/ Esquerda Democrática.
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A má polÃtica dos mitosÂ
A refundação necessária
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A esquerda é necessária
Sobre vieses e viseiras