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Duas táticas da social-democracia

Caetano Araújo - Fevereiro 2020
 


Ao final de 2019, no calor dos debates a respeito das eleições no Reino Unido, a Folha de S. Paulo publicou, no intervalo de poucos dias, a avaliação de dois personagens do debate político britânico, Martin Wolf e Tariq Ali, a respeito do programa apresentado pelos trabalhistas. Em poucas palavras, a plataforma do partido propunha a expansão da rede de proteção social mantida pelo Estado para os mais vulneráveis, custeada pelo aumento significativo dos impostos incidentes sobre as grandes empresas e os estratos mais ricos da população. Para Ali, essa agenda retoma, corretamente, a tradição trabalhista, abandonada por décadas pela direção partidária. Na opinião oposta de Wolf, que iniciou sua militância política na juventude trabalhista, essa agenda resultaria em fuga de empresas, redução do investimento, recessão e desemprego. Seria uma atualização canhestra da tese do socialismo em um só país, com uma diferença importante: em tempos de globalização, a possibilidade de estado de bem-estar social em um só país é ainda mais remota.

Essa divergência perpassa hoje todo o campo democrático e progressista ocidental. Está presente no programa vitorioso dos socialistas portugueses, centrado na manutenção simultânea da renda básica universal e da tendência decrescente da dívida pública. Mas já comanda também as discussões na frente de centro-esquerda espanhola que assumirá o governo, organiza a disputa das candidaturas democratas nas eleições presidenciais americanas, e, nos demais países europeus, tende a ser o principal obstáculo a uma iniciativa eleitoral conjunta contra o avanço da extrema direita.

Muito foi escrito sobre essa questão. Não procuro apresentar aqui perspectiva inovadora alguma. Meu propósito é expor, de forma sumária, com a clareza possível, teses para alimentar a discussão, a partir de uma das perspectivas em jogo no debate. Nessa linha, trago argumentos a respeito da origem dessa divergência e do seu objeto.

Antes, assinalo a radicalidade dessa divisão, na percepção dos seus protagonistas. A renovação trabalhista denominou a si própria terceira via, uma forma de diferenciação tanto em relação aos conservadores, radicalizados à época na direção do neoliberalismo, quanto em relação à social-democracia tradicional, praticada até então pelo partido. Hoje, Tariq Ali percebe o campo da política na Europa de forma tripartite: esquerda, extrema direita e centro extremo, em luta permanente entre si. Na disputa eleitoral, não faz muito tempo que Melenchon defendeu o voto nulo no segundo turno das eleições francesas, disputado entre Macron e a extrema direita. E, na última eleição americana, Bernie Sanders tardou duas preciosas semanas para declarar seu apoio a Hillary Clinton.

Sobre a origem, penso que a divergência não é recente, mas data precisamente da crise do estado de bem-estar social, na década de 1970. Na época, o agravamento progressivo dos problemas de financiamento do modelo levou a uma crise econômica de grandes proporções na Europa Ocidental, manifesta em estagnação, inflação e desemprego. Nesse quadro, quebrou-se o consenso anterior entre direita e esquerda favorável ao modelo, a direita assumiu uma feição econômica liberalizante, chamada então de neoliberal, lucrou com a insatisfação popular e impôs derrotas eleitorais à esquerda.

A resposta política da esquerda foi imediata. Os socialistas franceses, no meio do governo, promoveram uma guinada, de políticas de incremento do gasto público e da estatização da economia, para outras de austeridade fiscal e privatizações. Na Espanha, os socialistas promoveram a mesma mudança antes das eleições e chegaram ao governo com uma agenda de privatizações legitimada pelas urnas.

A resposta teórica e reflexiva demorou um pouco mais. A derrota eleitoral de 1979 levou os trabalhistas britânicos de volta às bibliotecas e alguns anos de estudos e debates resultaram na formulação de uma nova agenda, rotulada como terceira via na obra de um de seus mentores, Anthony Giddens.

Nessa perspectiva, a crise do estado de bem-estar social tem como causas mudanças, profundas, em curso no mundo. Dois eram os pilares da sustentabilidade do modelo: situação próxima ao pleno emprego e relativa imobilidade do capital no interior das fronteiras nacionais. A revolução tecnológica atacou ambos os pilares ao mesmo tempo. Empregos foram destruídos de forma direta, pela automação, e indireta, por meio da nova mobilidade dos capitais pelo mundo.

Antes da mudança, as empresas multinacionais podiam ser comparadas a grandes árvores, com as raízes fincadas no solo de cada país. Investimento externo seria algo como o lançamento de sementes ao vento. Com a revolução da circulação da informação em tempo real, grandes empresas multinacionais ganharam asas, transformaram-se em pássaros gigantes, que se locomovem instantaneamente para os países que apresentam condições melhores de lucratividade.

Num mundo como esse, a margem de liberdade das políticas econômicas governamentais se reduz. Desequilíbrios fiscais antes administráveis tornam-se incontornáveis na nova situação. Não se trata, portanto, de identificar desvios em relação a modelos de validade universal, sequer a preceitos teóricos válidos do começo ao fim do século, mas da mudança das condições de produção que decretaram a urgência de determinados conjuntos de regras e a obsolescência de outros.

Em essência, estamos diante dos mesmos problemas de então. A chamada terceira via, que os adversários julgavam enterrada depois dos equívocos dos governos trabalhistas britânicos e democratas americanos de fins do século XX, ressurge nos desafios políticos postos ao campo democrático no início do século XXI.

A divergência fundamental apontada acima é replicada em diferentes eixos temáticos. Tentamos aqui descrever as posições típicas que definem a oposição no interior de cada um desses eixos e as afinidades que guardam entre si.

O primeiro eixo temático relevante para estabelecer as diferenças é o processo de globalização. Temos aqui de um lado intelectuais, partidos, movimentos sociais que enfatizam o aspecto político, intencional e voluntarista do processo. Em consequência, seria possível uma resposta autarquizante por parte dos estados nacionais, igualmente política, intencional e voluntarista. Em poucas palavras, haveria margem maior de manobra dos estados nacionais e necessidade menor de recorrer à regulação pactuada entre as nações nos foros internacionais. Esses posicionamentos tendem a se manter no interior dos limites das plataformas tradicionais da esquerda democrática.

Em oposição, temos uma social-democracia de novo tipo, que procura dar resposta aos desafios da prosperidade, da inclusão e da equidade social, sem desviar a atenção das exigências que o processo de globalização impõe, particularmente no que respeita ao leque de políticas econômicas viáveis.

O segundo eixo temático é, portanto, a política econômica e seus limites. No mundo anterior à globalização, quando as fronteiras nacionais constrangiam a mobilidade de cidadãos e de empresas, a capacidade de os governos nacionais de deslocar problemas para o futuro era elástica. São coerentes com essa época, as ideias de ausência de limites para o endividamento público ou, alternativamente, para a tributação de empresas e cidadãos.

Uma nova social-democracia procura, em contraste, identificar e observar esses limites, uma vez que sabe por experiência que sua ultrapassagem acarreta, necessariamente, crise econômica, redução do emprego, com aumento da pobreza e da desigualdade. O compromisso com a sustentabilidade econômica das políticas, ou, como preferem alguns, com a responsabilidade econômica, torna-se parte fundamental da plataforma reformista. Importa lembrar que essa perspectiva não recusa a necessidade de intervenção reguladora sobre os mercados. Reconhece apenas a insuficiência dos estados nacionais para a tarefa de regulação de mercados que são, cada vez mais, internacionais e a consequente necessidade de recorrer a acordos entre as nações para essa finalidade. Na perspectiva da nova social-democracia, portanto, o ativismo diplomático ganha centralidade.

O terceiro eixo temático é a sustentabilidade. A agenda tradicional data de uma época recente, na qual a gravidade dos riscos da atividade humana para o ambiente de que dependemos não estava completamente exposta. Em consequência, eram frequentes tanto a posição de restringir as politicas ambientais ao âmbito nacional, de modo a evitar interferências estrangeiras nessa questão, quanto a de postergar a resolução da questão ambiental, subordinando o problema a outros, supostamente mais relevantes, como a geração de emprego e renda. Claro que subjaz a uma posição como essa um otimismo que soa insano hoje, como se fosse possível reparar no futuro, em prazo curto, todo e qualquer dano ambiental tolerado no presente.

A nova agenda, evidentemente, considera essencial e imprescindível a dimensão internacional da questão ambiental, reconhece a possibilidade de danos irreversíveis, no curto prazo que é o do nosso interesse, e a urgência das medidas reguladoras, capazes de prevenir esses danos.

Finalmente, o quarto eixo temático que opõe, a meu ver, as duas agendas da social-democracia é a própria questão democrática. Na visão tradicional, a mudança ocorre no âmbito da nação e seu principal agente é o estado. O tipo de democracia afim com essa perspectiva pouco demanda a participação do cidadão, é uma democracia de delegação. Eleitos os representantes do povo, cabe a eles tomar as decisões relevantes, traduzidas em leis e decretos, e à burocracia governamental cabe efetivar essas decisões, por meio de portarias, regulamentos e a ação cotidiana dos funcionários públicos especializados.

Hoje, de um lado, a circulação de informação em tempo real torna a participação do cidadão fundamental na formulação e implementação das políticas públicas. No plano nacional, portanto, a democracia representativa divide espaço cada vez mais com a participação direta dos cidadãos, por meio do conjunto de associações que integram a sociedade civil organizada. No plano internacional, contudo, nos processos de integração regional e nos organismos internacionais de cooperação e deliberação, um déficit de representação democrática começa a ser percebido pelos cidadãos dos estados nacionais, com consequências eleitorais cada vez mais evidentes.

A percepção tradicional de social-democracia atribui, de forma coerente, pouca relevância a ambos os problemas. Afinal, se a mudança pode ocorrer nos limites da nação e o estado é seu principal condutor, a escolha periódica dos representantes é suficiente para a manutenção da ordem democrática. A participação necessária restringe-se à fiscalização das atividades dos representantes eleitos. Se a deliberação pactuada entre as nações envolve questões de menor importância, tampouco é necessário um processo de legitimação democrático adicional para elas.

Em contraste, para uma nova social-democracia, essas questões existem e são relevantes, de modo que um esforço de inovação institucional permanece necessário para dar conta delas.

Esses os grandes temas que dividem, ontem, como hoje, as duas grandes vertentes do campo social-democrata nos países capitalistas ocidentais. Estão presentes nas disputas políticas e eleitorais desses países, tanto no discurso dos atores da política quanto na rede de conceitos indispensável para a análise do processo político nesses países.

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Professor do Departamento de Sociologia da UNB

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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