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Uma mensagem sobre povo e democracia

Paulo Fábio Dantas Neto - Maio 2020
 


Durante o tempo do isolamento social, tenho me ocupado em acompanhar, como posso, os zigue-zagues da conjuntura crítica que atravessamos. Saio dessa labuta por um momento para, neste breve texto, compartilhar uma preocupação política adicional, que tem a ver não tanto com a rotina da política democrática, mas com a percepção social sobre ela. 

Percebemos, ou supomos, o impacto da militância digital bolsonarista sobre essa percepção. Preocupa-me ainda mais, no entanto, a apropriação desse meio por profissionais do discurso antidemocrático. Noves fora os delírios ditatoriais ou fascistas e as meras ostentações de baixo calão, a versão mais sofisticada e virtualmente eficaz desse discurso é a que se apropria da ideia de democracia. Sofisticada, pois manipula o discurso da democracia direta, ou da democracia de alta intensidade, discursos críticos da democracia representativa, e os faz de bumerangues, emulando a parte da esquerda que com eles simpatiza. Eficaz, porque resume, numa narrativa simples, duas questões muito complexas: a da relação entre soberania popular e representação política e a da história da formação política do Brasil. Começarei pela segunda.

A fábula de que tudo no Brasil começou com o povo e as forças armadas: é preciso desmascarar essa farsa. E dizer não! No começo havia o estado, os senhores, as armas de ambos e uma população que não era povo. Com o tempo, o poder do estado foi ficando maior que o dos senhores. Por quê? Porque não se sustentou só na força. Para manter sua autoridade, sobre a população e os senhores, o estado precisou criar instituições. Foi através delas que a população do Brasil se tornou povo brasileiro. É essa História que querem desconstruir.

Precisamos nos vacinar contra o risco que corremos de facilitar essa desconstrução. Sim, facilitamos a missão dos destruidores quando nos deixamos levar pela ideia, também fabulosa, de que no Brasil houve povo antes das instituições. Isso nos desarma para enfrentar essa ideologia mistificadora e reacionária do povo cristão fundador. Mais do que isso: essas ficções que cresceram na nossa praia da esquerda nos paralisam politicamente porque sugerem que devemos ter vergonha do que viemos a ser. Enquanto lamentamos o edifício que construímos, os profissionais do golpismo mitificam e convocam o povo para que os ajude a destruí-lo.

Chegamos à segunda questão. O povo brasileiro não é uma massa, como pensam os populistas, de direita ou de esquerda. Também não é um arquipélago de comunidades, como pensam os que seguem ideologias libertárias ou distópicas e não gostam de política. O povo constitui uma sociedade, da qual fazemos parte, todos nós, com nossos diferentes valores, interesses e inserções. Damos vida a instituições democráticas, nas quais fazemo-nos representar, unidos pela noção de que é melhor viver na liberdade pacífica do que sob a opressão da guerra civil.

Então, defender o povo não é heroísmo ou sacrifício e sim um gesto de autopreservação. O povo brasileiro não é obra divina nem ideológica. Somos obra da política! Para nos defender, como povo, é preciso defender a política, com muita firmeza e sem vestígio de culpa.

Acho importante refletir sobre o tipo de perigo que nos ronda, o perigo da destruição. Por causa dele é preciso pensar duas vezes antes de desejar qualquer tipo de faxina. Manter nossas consciências distantes da ideia de que pode existir qualquer bem que nos livre de todo o mal.

Refletir para que paremos de pensar no Congresso ideal ou no STF ideal e passemos a entender que é preciso defender o Congresso e o STF que temos. Para que compreendamos a necessidade de preservar a democracia, o País e o mundo que temos, com as suas virtudes e os seus pecados, que, afinal, vinculam-se ao fato de serem criações humanas. Não há como querê-los limpos e perfeitos sem sacrificar a nossa própria humanidade.

Como dizer essas coisas a pessoas desprovidas de formação e informação política? Assistindo a uma entrevista no programa Roda Viva, tive um primeiro contato virtual com um dos youtubers relevantes que atuam nessa arena digital. Penso que é gente tão relevante para a comunicação política quanto são relevantes os sanitaristas no combate à pandemia. A sociedade precisa muito deles para superar pandemônios. A política democrática precisa conversar muito com uns e com outros. Falar e ouvir. Ensinar e aprender.

Ao mesmo tempo a sociedade vai precisar de política, sempre, para que youtubers e sanitaristas não se tornem novos mitos opressivos e para que se deixem contaminar, benignamente, pela racionalidade da política democrática. Essa, sim, é imprescindível.

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Cientista político e professor da UFBa

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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