Somos testemunhas ainda nessas primeiras décadas do século de uma grande transformação apesar de não a sentirmos, tal como no movimento da terra em suas rotações, expressão de Joaquim Nabuco, e já iniciamos, embora ainda tateantes e inconscientes, uma nova era. Contudo, dos anos 1980, de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, retomados por Donald Trump no nosso século, foram feitas vigorosas tentativas no sentido de parar a roda da história e fazê-la girar para trás, tanto nos esforços de nos devolver aos nacionalismos outrora semeados pelos estados-nação como em preservar a ideologia produtivista do neoliberalismo. Esse foi um tempo de desmonte de instituições e de direitos, de esvaziamento de organizações internacionais, como a ONU, de tentativas de invalidar a União Europeia (caso do Brexit inglês), de depreciação da democracia e de suas formas de representação polÃtica, com a ressurgência anacrônica do populismo, inclusive em alguns casos na sua versão fascista.
Vários marcadores denunciam que tais esforços não têm logrado os resultados que deles se esperavam, quer porque se defrontam com obstáculos derivados das suas próprias ações na medida em que edificaram uma sociedade de risco, não só com a proliferação dos artefatos de guerra nuclear como também pela depredação do meio ambiente, expondo a sociedade humana a uma sucessão de epidemias letais, quer porque têm encontrado resistência polÃtica por parte de partidos, movimentos sociais, especialmente entre os jovens, governos e religiões, como no caso forte da igreja católica.
De outra parte, as desigualdades sociais que se extremam no perÃodo neoliberal, expostas na monumental pesquisa do economista Thomas Piketty, esgarçam ainda mais os laços de solidariedade social, numa polarização aberta entre as classes dominantes e os seres subalternos, produzindo conflitos sociais agudos e cada vez mais intensos, particularmente agravados pela questão racial, exemplar na cena atual pelas ruas das grandes cidades americanas e não poucas europeias. E também por aÃ, numa chave branda de interpretação ao estilo do velho e estimado Durkheim, se infiltram as convicções de que o capitalismo nessa versão vitoriana não reúne mais condições de reprodução - sem base de sustentação em recursos que induzam a solidariedade social, as sociedades derruem.
A sociologia e as demais ciências sociais não têm o condão de mudar o curso das coisas no mundo, apenas explicam com diferentes capacidades de persuasão o que se passa nele. O meio idôneo para transformá-lo, como se sabe, pertence ao reino da polÃtica, que se encontra, no momento atual, diante da oportunidade de romper caminho para uma trajetória alternativa na sucessão presidencial dos EUA ao alcance das mãos em apenas três meses, quando poderá abalar ou mesmo pôr abaixo este derradeiro pilar neoliberal com a derrota eleitoral de Donald Trump. Na pior hipótese, caso ele triunfe, dadas as expressivas forças que ora se opõem a ele, que seja por meio de uma vitória de Pirro.
Sem a escora da polÃtica de Trump, garantia até aqui da reprodução da modelagem neoliberal, o teatro de operações na cena mundial terá diante de si uma bifurcação, categoria a gosto de Piketty, abrindo-se a possibilidade para a imposição de rumos entrevistos no curso das lutas contra a atual pandemia, em particular na valorização das polÃticas públicas de saúde, claramente percebidas no Reino Unido e no Brasil, dos mecanismos de cooperação internacional e os diversificados movimentos de ação solidária saÃdos do ventre da sociedade civil, inclusive os originários dos seus setores subalternos, e, muito especialmente, no papel do Estado como lugar de articulação dos esforços em defesa da vida, em que foram exemplares a Nova Zelândia e tantos outros casos nacionais. Tudo isso levado em conta, afirmam-se tendências que importam em viradas de páginas e na percepção de que um novo tempo faz parte do campo das possibilidades em presença.
Sem tal escora ou com seu enfraquecimento, polÃticas que nela se arrimam, como notoriamente a brasileira, devem experimentar inflexões benévolas no seu curso, a serem exploradas pelas correntes polÃticas democráticas, a começar pelas sucessões municipais que se investem de um papel estratégico, inclusive em razão do seu desenlace prefigurar o cenário da próxima sucessão presidencial. Nesse sentido, a hora dos partidos é esta, e o que cabe, na contracorrente de uma bibliografia irresponsável que medra por aÃ, é valorizá-los e procurar influir na composição de suas alianças sem sectarismos e em torno de ideais democráticos. Quanto à s candidaturas, é essencial conceder representação privilegiada à queles que se destacaram nas lutas pela defesa da vida da população, como os profissionais da saúde e dos que organizaram os sistemas de cooperação solidária no mundo popular. Além, é claro, de selecionar polÃticos com credenciais que os identifiquem com a democracia e com os temas relevantes para o mundo popular.
A catástrofe da pandemia que nos assola pôs a nu o caráter patológico da modelagem de sociedades sob hegemonias da ideologia neoliberal, e não por acaso EUA e Brasil lideram o ranking macabro de óbitos, ocupando os dois primeiros lugares. Obviamente que as candidaturas em suas campanhas eleitorais devem estar centradas nos temas que digam respeito à s concepções de sociedade e de justiça, traduzidas no plano concreto por enunciados por polÃticas distributivas e de promoção social. Essa hora tem a cara da esquerda democrática a ressurgir nas ruas e no voto.
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Sociólogo, PUC-Rio
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Observador polÃtico 2020