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Fiat lux sobre a questão da Amazônia

Lúcio Flávio Pinto - Setembro 2020
 


A origem do ser humano na Amazônia pode remontar a 20 mil anos. É 40 vezes mais tempo do que o ingresso do colonizador europeu. Na metade do século XVII, o padre Antônio Vieira estimava a população amazônica em 2 milhões de pessoas. É impossível dizer quantos - dos que passamos a chamar de índios com a "descoberta" do Novo Mundo - se sucederam ao longo desses 20 milênios, mas, sem dúvida, podem contar-se por vários milhões.

Quem já percorreu a Amazônia pelo que antes denominávamos de hinterland, fora das capitais, pode se surpreender com sinais da presença desses habitantes primitivos, mesmo onde não existem mais descendentes deles no local visitado. É uma árvore de várzea em terra firme ou vice-versa, por exemplo. Ou cacos de cerâmica e manchas de terra preta no que foram aldeamentos. Grandes transformações na paisagem natural, porém, não existem.

O fogo era usado e alguma mata derrubada, mas não com combustível ou pela utilização de correntão, motosserra ou produtos químicos. As centenas de agrupamentos indígenas eram formados por povos que ainda estavam na transição do que impropriamente definimos como civilizatório. Para alguns, o fogo poderia ser descoberta recente. Todo engenho e arte era manual.

Tem apenas meio século a era do desmatamento e do fogo, como ferramenta massiva do avanço de colonizadores de diversificados calibres (da sociedade anônima ao João da Silva) sobre a floresta, que pretendiam pôr abaixo, para amansar a terra, conforme técnicas ancestrais, mas alteradas pela tecnologia da destruição. Ela partiu de menos de 1% para 34% da superfície da região, suprimindo a cobertura vegetal de uma área com três vezes o tamanho de São Paulo, a unidade federativa mais rica (e mais desigual) do país e do continente.

No início, o desmatamento era mecânico, através de milhares de braços (principalmente nordestinos, em especial maranhenses e piauienses) em regime de trabalho equiparado ao da velha escravidão, bem conhecida (e levada ao paroxismo da selvageria) por nós, brasileiros. Fomos o último povo a aceitar a libertação do cativo (logo no ano seguinte golpeando o império com um golpe militar para impedir que os liberados avançassem sobre terras privatizadas a partir da lei 601, de 1850, que vedou o acesso à propriedade rural por meio do trabalho, impondo a relação capitalista de compra e venda por moeda).

Com o incremento das derrubadas de floresta para permitir a formação de imensas fazendas de gado, com subsídio estatal, as árvores foram secando no chão, abrindo espaços para o uso do fogo e de aditivos químicos, inclusive os proibidos, como o terrível agente laranja, empregado pelos Estados Unidos como desfolhante na guerra do Vietnã.

Só então os grandes incêndios começaram a pipocar no rastro da frente pecuária, da extração madeireira e dos assentamentos para a implantação de um modelo de reforma agrária tão lesivo à Amazônia quanto, em escala maior, as unidades capitalistas de produção (já então para o mercado nacional e o externo).

Esta não é uma história abstrata, um conto da carochinha. É uma história que se conta desde 1975, com o convênio Sudam/IBDF (órgão que antecedeu o Ibama), responsável pelo mapa do desmatamento da área de mais intensa ocupação, no sudoeste do Pará. Com base em restituição de imagem de satélite, usa "fotografias" feitas do espaço em tempo real, reprodução legítima do que acontece no solo, a centenas ou milhares de quilômetros de distância dos satélites.

Em 1976 o satélite Skylab flagrou a Volkswagen queimando de uma só vez 10 mil hectares (100 quilômetros quadrados) na sua fazenda no sul do Pará. Em 1987, o satélite NOAA-9 serviu de base para a constatação de que 80 mil quilômetros quadrados (8 milhões de hectares) de floresta nativa foram devastados na Amazônia (mais 120 mil km2 de outras coberturas vegetais).

Em 1990 fui à sede da agência meteorológica dos Estados Unidos que monitora esses satélites e conversei com os cientistas sobre a celeuma provocada no Brasil pelo número estratosférico. Eles confirmaram que o resultado, sob uma margem de erro bem maior, em função de ser um satélite meteorológico (o governo decidiu não pagar mais caro pelo uso do satélite Landsat, o mais apropriado), retratava a realidade.

De 1988 para cá, o Inpe tem garantido a série histórica sobre desmatamento e queimadas na Amazônia reconhecida como a fonte mais fidedigna de que se dispõe no mundo inteiro. O Inpe é órgão federal, que vai fazer 60 anos de existência. Por que negar agora os seus dados, por contrariarem o vodu ecológico do capitão Jair Bolsonaro e do tecnocrata Ricardo Salles? Por que deixar que o voluntarismo utilitário da má política sufoque a contribuição científica? Por que permitir esse jogo absurdo, estúpido e irracional de meia dúzia de potentados?

A reação a esses crimes de lesa-pátria não pode se restringir a denunciar e criticar Bolsonaro et caterva. Com seus desatinos e irresponsabilidades, ainda assim ele está influenciando milhões de brasileiros. Brasileiros que desconhecem a Amazônia, sendo fáceis vítimas do canto de sereia mais sedutor. Brasileiros que não sabem o que a Amazônia deve à solidariedade do saber mundial e o quanto sofre pela espoliação do capital mundial (e não menos, do capital nacional).

Quem acompanha a história da Amazônia neste meio século recente, percorrendo a região e se informando em fontes de credibilidade, não consegue entender como a algaravia de besteiras enunciadas por Bolsonaro na ONU pode receber tanto endosso, até mesmo de pessoas sensatas e de boa fé. Não basta ficar contraditando Bolsonaro & Cia.

É preciso buscar, sistematizar e difundir uma reconstituição com fundamento científico da Amazônia, em todos os ambientes sociais, para provocar não essa guerrilha de ataques pessoais, mas o que verdadeiramente ateste a nossa condição de homo sapiens, não de inquisidores digitais. Produzir vídeos, livros, cartilhas, manuais e material em escala suficiente para ser espalhada por escolas, universidades e centros de reprodução de informações. Enquanto ainda podemos ter uma Amazônia constituída de água, floresta e luz, com homens que se sirvam inteligentemente desse patrimônio, ao invés de destruí-lo, como manada de bárbaros.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor da Agenda amazônica de um jornalismo de combate. Entre outros, é autor de Na trincheira da verdade. Meio século de jornalismo na Amazônia (2017) e A tragédia de Santarém (Prelúdio do AI-5 na Amazônia).

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Fonte: A agenda amazônica de um jornalismo de combate & Gramsci e o Brasil.

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