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A virtude da prudência

Miguel de Jesús Pereira Filho - Fevereiro 2021
 



Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
[...] Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Álvaro de Campos

Os tempos em que vivemos não são fáceis. Amargamos uma persistente crise econômica que nos castiga desde o final do primeiro governo Dilma e da qual ainda não nos recuperamos. Além dela, vivemos uma crise sanitária por conta da Covid-19 que, só no Brasil, ceifou mais de 200 mil vidas. Como se não bastasse, os efeitos da peste são potencializados pela ostensiva colaboração simbólica de personalidades, políticos e, sobretudo, do atual mandatário do país, que se revezam em minar o combate à pandemia e solapar as instituições de nossa república. Nada que surpreenda: a lama pode mudar, mas os moradores são sempre os mesmos.

Essas crises, que se agravam e retroalimentam, fomentam um terceiro tipo de crise muito mais grave: a crise social. Se ainda não registramos casos de saques e tumultos generalizados pela miséria contumaz que se alastra pelo país, qualquer olhar mais atento percebe a erosão do nosso tecido social e, infelizmente, nos falta uma Penélope que o reconstrua ao anoitecer. A solidariedade, herança da nossa tradição ibérica, nunca foi testada de maneira tão intensa. Não obstante, ainda nos vemos às voltas com atritos na esfera política, em que a ralé, seja ela fardada ou não, assedia a nossa república democrática com suas taras atávicas golpistas. E justamente pela quadra atual em que nos encontramos (mas não apenas por conta dela), cresce o legítimo e compreensível desejo de ver o Bolsonaro fora da presidência.

Se no período anterior à peste, o presidente já acumulava vários crimes de responsabilidade, a impressão é que a pandemia o fez intensificar a loucura de seu método. Sua necropolítica, que antes se manifestava na apologia da morte como política de segurança pública, legitimada no país dos mineirinhos [1], agora aposta na relativização da doença, charlatanismo e estímulos à displicência nos cuidados individuais com a pandemia [2]. Atual ocupante da pasta da Saúde, o general Pazuello é apenas a matrioska que abriga o verdadeiro ministro: Jair Bolsonaro. Diante do período de maior dificuldade no mundo desde as grandes guerras, o presidente recusa o manto do estadista, que lhe verga os ombros, e prefere encenar a personagem dessa coisa mesquinha que habita o Planalto.

Assim, o interesse em remover o tirano mequetrefe do poder cresce, conforme mostram manifestações e queda na popularidade, que algumas pesquisas parecem começar a apontar. Ainda que o "Fora Bolsonaro" já seja ventilado abertamente nas redes sociais, a ocupação das ruas ainda não pode ser feita de maneira plena, possibilidade interditada pelo risco de contágio. Além desse fundamental combustível para a deposição de um presidente, a figura do presidente da Câmara dos Deputados é outro ponto importante, haja vista que será Arthur Lira (PP-AL), o novo presidente, que controlará a pauta legislativa, inclusive os pedidos de impeachment, que se acumulavam na antiga mesa de Rodrigo Maia. Embora seja uma vitória pessoal de Bolsonaro, tendo em vista a volatilidade do grupo que o cerca, não custa lembrar que o beijo pode ser a véspera do escarro e que a mão que afaga é a mesma que pode apedrejar.

Em circunstâncias assim, devemos seguir os conselhos dos mestres e retirar Maquiavel da gaveta e com ele os seus ensinamentos. O mais premente é o de que a história, longe de ser um script a ser seguido, nos serve de referência, como uma fonte de lições, sobretudo do que não fazer e no grande zigue-zague que marca a trajetória histórica desse país, não faltam exemplos úteis. Dos dois impeachments que ocorreram no país desde a Carta de 88, o de Collor, sem ancoragem partidária no Congresso e com um consenso formado pelas elites políticas da época, durou cerca de um mês. Já o de Dilma Rousseff, que, apesar da péssima relação com o legislativo, pertencia a um grande partido e tinha uma base formal importante de apoio parlamentar, quase 10 meses. Importante salientar que considero aqui apenas o período formal, não levo em conta o característico período anterior de intensa manifestação civil e articulação política, esta última orientada pelo day after. Observando o cenário atual, as condições objetivas e subjetivas não se apresentam ainda de maneira clara para que Bolsonaro tenha o primeiro pedido contra ele aceito.

Não obstante, a experiência mais recente nos autoriza a levar em conta que, legitimamente, o acusado lutará para permanecer no cargo, utilizando das armas que a presidência dispõe, como a liberação de emendas parlamentares e obras, além da oferta de cargos na burocracia federal. Procedimento igualmente legítimo e consentâneo da política, mas que fatalmente cobrará seu preço com a administração pública sendo utilizada como moeda de barganha para a manutenção no poder. Cabe perguntar: em uma etapa crucial de imunização da população; em um momento em que o Ministério da Saúde titubeia em receber ajuda para socorrer a população manauara, é disso que o Brasil precisa? A agenda política, que deveria se concentrar em sair do caos econômico, sanitário e social, ser capturada pela decisão de Bolsonaro ficar ou sair? Por último, é desejável retirar um presidente, a apenas um ano e meio do próximo ciclo eleitoral, ciclo esse em que seu legado será posto em escrutínio pela soberania popular?

Além dos questionamentos acima, nos cabe ainda perguntar sobre a efetividade de um processo de impedimento e sua possível capitalização pelo futuro réu. O rito de afastamento, legítimo pelos desmandos do presidente Bolsonaro, pode acabar nos fazendo embarcar em uma viagem redonda para o mesmo pântano da radicalização política, em que nos vimos atolados desde a eleição de 2014 e que, excetuando o interregno do governo Temer, foi um dos esteios para a ascensão de Bolsonaro - juntamente com o clima de terra arrasada gerado pelo lavajatismo - e a ralé da qual é o principal porta-voz.

Num (des)governo narrativo, em que a verdade factual é subjugada ao patamar de versão, tudo o que ele necessita para existir em sua plenitude é um ambiente de confronto com um inimigo que, mesmo que não exista, precisa ser fabricado. E que melhor jeito para recuperar a base eleitoral que ameaça se desfazer do que a ideia de que "azelites" - essas que impedem o presidente de governar (!) - agora querem apeá-lo do poder? Encapuzado pela aparência, o desejo de retirar Bolsonaro da presidência pode ser esteio para recriar a mesma atmosfera que o tirou da posição medíocre que ocupava para o mais alto cargo da república brasileira. Assim sendo, somos imediatamente levados à mesma pergunta: que fazer? Se partir para a ação voluntarista pode ser inviável, então a única alternativa é deixar que Bolsonaro continue confortável para deteriorar o país a sua imagem e semelhança?

Não, não é aqui que a prudência política encontra a sua nêmesis e se converte em inércia. Como bem nos lembra a grande Hannah Arendt em Sobre a Revolução, em que analisa o processo de independência dos Estados Unidos e o da Revolução Francesa, o processo que tem como finalidade a criação de uma nova ordem política deve ir além do simples desejo de libertação (da miséria, da tirania ou de ambos) e ter como norte a liberdade, condição efetiva de mudança. Esse teria sido o problema teratológico da experiência francesa que almejava pôr fim à tirania Bourbon, mas se tornou uma das fases mais sombrias da história francesa. Tal lição histórica nos faz um alerta: o imperativo de nos libertar do presidente pode nos enviar a uma quadra muito pior, se a ação política não conseguir balbuciar nada mais que "Fora Bolsonaro". Em suma, não basta dizer o que se quer, mas o que se pretende fazer.

Assim, a questão passa a ir além do imediatismo e observar determinados movimentos da política que ocorrem sem que os vejamos. É necessário ter em mente que, findadas as eleições de Saturnália [4], observamos uma distensão no ambiente político radicalizado de modo que, apesar de desejos palacianos, o confronto político foi gradativamente cedendo espaço para a necessidade de governar levada a cabo pelo protagonismo do legislativo - como poucas vezes se viu na história republicana -, não se furtando a enfrentar as grandes questões do país. Não obstante a desinformação e inação serem elevadas a categoria de política pública pelo governo Bolsonaro no combate à pandemia, foi a Geni que deu à luz a "PEC de guerra" e o importantíssimo auxílio emergencial que literalmente matou a fome de inúmeros brasileiros. Neste particular do enfrentamento à peste, é importante lembrar que o esforço congressual foi acompanhado de importantes decisões do STF, que restringiram a capacidade destrutiva do governo e obrigaram a União a prestar assistência a estados e municípios, além de garantir a obrigatoriedade, pasmem, da vacinação. E não é menos importante frisar que, com raríssimas exceções, viu-se um esforço coordenado na contenção dos efeitos econômicos e sociais da pandemia. A Bahia, com o petista Rui Costa e o democrata ACM Neto, é um exemplo benfazejo.

Além destes pontos levantados, há ainda outro importante movimento que foi o resultado das eleições municipais do ano passado, processo político que o presidente é contumaz em tentar desacreditar. O pleito trouxe um importante recado da soberania popular exercida pelo voto: a opção foi pela experiência política, sem apostar no radicalismo. Se é impróprio afirmar que a competição eleitoral voltou a seu leito normal, deixando pra trás o ineditismo de 2018, é inegável que os eleitores rechaçaram de maneira contundente o bolsonarismo. Por fim, e decorrente dos demais movimentos aventados acima, é possível observar um tímido, mas importante processo de construção de alianças para 2022, no qual alguns nomes já despontam como possíveis adversários a Jair Bolsonaro, este já candidato desde que foi eleito.

Contudo, é preciso ter em mente que nada ocorre como um raio em uma noite de céu sereno. Se a ideia é varrer o bolsonarismo para a sarjeta de onde veio, a ideia-força que deve nos animar não é nem pode ser tão somente o "Fora Bolsonaro", que, vindo do território da lacração ou não, é teratologicamente incapaz de produzir algo além de memes e vagas nas redes sociais. Se as forças políticas que se colocam contra o bolsonarismo não tiverem um consenso mínimo sobre o que fazer, ultrapassar a fase de ser "contra tudo que está aí" e apresentar à população brasileira um projeto alternativo de país, aventureiros da pior espécie continuarão a querer a atravessar o nosso assoreado Rubicão institucional (como tantos dos nossos rios) e açambarcar a república.

No Parlamento e governo na Alemanha reordenada, Max Weber exorta seus interlocutores a não permitirem que o sangue derramado dos soldados alemães na I Guerra seja em vão por conta de atitudes políticas infelizes. Penso que exortação semelhante cabe nesse momento: os milhares de mortos pela peste; as milhões de crianças que, afastadas da rotina escolar, já sequer se lembram de como escrever o próprio nome; o sacrifício - muitas vezes às custas da própria vida - dos bravos profissionais da saúde que lutam diariamente para salvar pessoas; tudo isso pode não ter valido de nada se a ética da convicção, que anima diversos setores da sociedade civil e política, resolver sentar praça de vez e nos levar a uma encarniçada luta de trincheira, que não garante que a necropolítica bolsonarista terá fim com Mourão. Nem mesmo o afastamento de Bolsonaro, tendo em vista o precedente do julgamento de Dilma, garante que o capitão não retorne logo depois como candidato na próxima esquina eleitoral. Os dias que vivemos não autorizam as Polianas a suspirar. Sofremos enxovalhos dia após dia, ainda que nem sempre calados. É imprescindível que aqueles que não se curvam ao espírito bolsonarista do tempo, mas também não aceitam o voluntarismo como script, se unam e marquem posição. A Carta de 88, mais do que nunca, é a bússola e a ancoragem para agir em momentos tempestuosos como o que vivemos, sabendo lidar com o fardo desses tempos, sem negar sua existência nem sucumbir ante seu peso.

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Sociólogo pela UFBA e professor da rede estadual de ensino da Bahia

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[1] PEREIRA FILHO, Miguel. O país dos mineirinhos. Disponível em: https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=2345

[2] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/01/25/am-planalto-analisa-ha-9-dias-oferta-de-avioes-de-eua-e-onu-para-oxigenio.htm

[3] PEREIRA FILHO, Miguel. As eleições de Saturnália. Disponível em: https://www.soteroprosa.com/single-post/2018/11/10/as-elei%C3%A7%C3%B5es-de-saturn%C3%A1lia

 




Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil

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