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Rosa, sempre rubra, rosa

Daniel Aarão Reis Filho - 1999
 

Nascida em 5 de março de 1871, de uma família judia, em Zamosc, uma pequena cidade da Polônia russa, Rosa Luxemburg, desde cedo, começou a ter -- e a provocar -- problemas. Ainda adolescente, participou de um grupo vinculado ao partido revolucionário socialista proletário, o Proletariat. As atividades e as conversas a que se dedicavam não podiam ser toleradas pelo tsarismo e as coisas acabaram se complicando para a jovem Rosa que, ameaçada de prisão, não teve outra saída senão fugir. Foi assim que, em 1889, nos seus verdes -- e já vermelhos -- 18 anos, emigrou para a Suíça, em cujas montanhas se abrigavam então os aventureiros e os revolucionários de todas as utopias.

Estabeleceu-se em Zurich, matriculando-se na universidade local, mas o que a interessava sobretudo não eram os estudos universitários, mas a revolução social. E dela tanto mais se encantou quando pôde associar ao interesse o sentimento, enamorando-se apaixonadamente por Leo Jogiches, também exilado e judeu, de uma rica família de Vilna, capital da Lituânia, na época igualmente sob o tacão tsarista.

Rosa e Jan Tyszka, nome de guerra com que Leo era conhecido nos círculos conspiratórios do exílio, formaram, na primeira metade dos anos 90 do século passado, um par infernal. Uma espécie de Bonnie e Clyde da subversão socialista. Rosa era, sem dúvida, a cabeça pensante do casal, pela consistência teórica que já demonstrava. Personificava o rigor dos princípios e a clareza da formulação. Tyszka era um príncipe da intriga, sabia articular como poucos nos subterrâneos da clandestinidade. Personificava a experiência prática do trabalho organizativo. Desde 1893, passaram a editar um jornal -- a Causa Operária -- que desempenhou papel-chave, no ano seguinte, na formação do Partido Socialdemocrata do Reino da Polônia, primeiro partido deste tipo organizado em terras do Império tsarista.

Foi um tempo de aberturas e de descobertas, o que é próprio dos começos. A perspectiva da revolução e o encontro do amor. Rosa ainda viria a conhecer experiências muito mais ricas e exaltantes, e se tornaria célebre, uma figura histórica, mas é possível que nunca mais tenha sido tão feliz.

Em 1896, uma viragem: Rosa escreveu vários artigos sobre a Polonia para a Die Neue Zeit, principal revista da socialdemocracia alemã. As coisas que dizia, e o estilo com que escrevia, impressionaram. Foi como houvesse ocorrido uma mudança de escala. Das sombras de uma pequena organização obscura, operando clandestinamente nos confins ocidentais do Império tsarista, para as luzes do grande partido socialdemocrata alemão, com seus milhões de aderentes e filiados, dezenas de jornais, parlamentares e poderosas organizações sindicais.

O convite para escrever para jornais socialdemocratas alemães veio rápido e Rosa não resistiu ao magnetismo de Berlim. As dificuldades de um problemático processo de legalização foram resolvidas com um casamento branco com o militante socialdemocrata Gustav Lubeck, prussiano de origem. Assim, já em 1898, Rosa aparecia como redatora de jornais socialdemocratas.

Mas não abandonou os companheiros e os projetos poloneses. Como se verá, um dos traços mais salientes de sua trajetória será exatamente o bifrontismo Oriente/Ocidente, a tentativa de pensar simultaneamente os problemas da revolução nas duas metades da Europa. Berlim, neste sentido, não podia ser melhor escolha, encravada com seu charme e cosmopolitismo, suas fábricas e seu proletariado, seus progressos e retardos, e misérias, no centro da Europa Central. Rosa chegou nesta cidade no momento em que se estava formando, entre os socialistas, a tormenta do debate sobre o chamado revisionismo.

Eduardo Bernstein puxara a polêmica com suas teses, publicadas desde 1897. De forma provocativa, ele apontava uma contradição básica entre o que chamava de socialismo teórico e socialdemocracia prática. De um lado, os socialistas alemães continuavam pregando e propagando a doutrina da revolução social e da luta de classes, inspirada nos escritos de K. Marx e F. Engels. De outro, no entanto, e na prática, o que se fazia era barganhar por melhores condições de vida e de trabalho no interior da sociedade alemã. Os operários, pelo menos na área da Europa Ocidental, e na Alemanha em particular, tinham deixado de ser aqueles miseráveis personagens que habitavam as páginas do Manifesto Comunista para se transformarem em cidadãos, plenamente integrados na sociedade da qual faziam parte, com direitos e deveres previstos em Lei. Não eram mais marginais sem eira nem beira, mas disciplinados trabalhadores, ordeiros pais de família, queriam apenas melhores condições, mais direitos e, acima, de tudo, respeitabilidade.

Não ficou pedra sobre pedra da tradicional ortodoxia, inclusive seu dogma central: a inevitabilidade da revolução. O socialismo seria alcançado através de reformas graduais, o que, aliás, já estava acontecendo, e era isso o que mais importava. O partido deveria assumir isto abertamente e ter a coragem, dizia Bernstein, de parecer o que é.

Foi um choque, como na história em que o moleque de repente grita: o rei está nu! Mas daquele ambiente de desorientação emergiu uma figura inesperada. Tinha a pena afiada e o verbo cortante. Quem era aquela quase desconhecida, mulher, judia, meio polonesa, ou seria russa? Nem bem tinha 27 anos, mas lhe sobrava coragem intelectual e moral para travar um grande embate: Rosa Luxemburg.

Numa série de artigos, reunidos depois num clássico do pensamento revolucionário: Reforma ou Revolução?, Rosa ousou passar à contra-ofensiva. Para ela, o pensamento de Marx não se resumia a um conjunto de fórmulas, congeladas no tempo, era uma teoria viva, cuja fonte era a própria História, e desde que assim tomada, plenamente atual. Em sua visão, as reformas sociais não deveriam ser abandonadas, mas colocadas na perspectiva de construção de uma outra sociedade, alternativa. Invertendo a fórmula de Bernstein, para quem o movimento (pelas reformas) era tudo, e o fim último (a revolução), nada, Rosa afirmava que a revolução era tudo e que, sem proposta a longo prazo, as reformas nada significavam. Só apoiada no horizonte da revolução é que o movimento pelas reformas ganharia força e consistência. Se as teses do adversário fossem aprovadas, argumentava Rosa, não haveria revolução nem seriam obtidas as reformas.

Na luta que então se travou, as teses revisionistas foram derrotadas por larga margem. Rosa, a grande vitoriosa, ganhara o apoio e o respeito de Kautsky, de Bebel, ex-operário e então presidente do partido, e de outros cardeais da socialdemocracia. Mas não escapou à sua argúcia que, se o partido recusara-se a parecer o que era, nem por isso deixara de ser aquilo no que havia se transformado: uma grande organização ancorada na luta pelas reformas sociais, mais preocupada em conservar-se do que em subverter de forma radical a Ordem tradicional e dominante.

A luta política conferira a Rosa projeção e notoriedade, inclusive internacional. Ela as empregaria sem contemplações contra os reformistas ou revisionistas. Mas também, se fosse o caso, contra representantes das alas mais radicais, como, por exemplo, na polêmica contra Lenin e os bolcheviques a propósito das concepções de construção e organização partidárias. Advertia contra os perigos do excesso de centralismo. E contra a supervalorização do papel da vanguarda partidária: a revolução haveria de ser obra consciente das grandes massas dos trabalhadores, ou não passaria de uma caricatura. Nos primeiros anos do século, entre outras campanhas, participou ativamente da denúncia do militarismo galopante que empolgava as principais nações capitalistas. Com suas ácidas críticas, não poupava ninguém, nem nenhuma autoridade. Pegou então, em 1904, sua primeira pena: três meses de cadeia, acusada de ter ofendido o Imperador.

Pouco depois de recuperar a liberdade, colheu-a a revolução russa de 1905. Teria sido sensato observá-la de longe. Mas a sensatez nunca fora uma de suas características, e preferiu ver o ciclone de perto. Aquela também era a sua revolução, não apenas por cultivar de modo intenso a sensibilidade internacionalista, mas porque, na prática, nunca abandonara os vínculos políticos e organizativos com a socialdemocracia polonesa.

Com seu velho amante e companheiro de armas -- Leo Jogiches --, transferiu-se para Varsóvia, na Polônia russa, para sentir o pulsar daquele processo caótico, surpreendente, selvagem, revolucionário.

Em três ondas enormes e sucessivas, os movimentos sociais desencadearam-se: trabalhadores urbanos, camponeses, soldados, marinheiros, nações não russas, aquelas gentes consideradas turvas, apáticas e amorfas, humildes e incapazes de tudo, levantavam-se, auto-organizando-se, auto-organizadas, indignadas, exigentes, criativas, insolentes. Abalaram as tradições e o conforto dos conservadores, o regime político do tsarismo eterno e as convicções dos próprios revolucionários.

Rosa no redemoinho estava no seu elemento. Participando e analisando. Acabou presa, em março de 1906. Mas saiu das grades com um texto subversivo como a revolução: Greve de Massa, Partido e Sindicatos. Havia ali um transbordamento de confiança no papel histórico das massas trabalhadoras. Elas haveriam de superar suas imensas dificuldades e passar à ação revolucionária.

Enquanto todos saudavam a revolução russa, mas sublinhando seu caráter especificamente russo, ou seja, não generalizável, Rosa, na contracorrente, ressaltava que naqueles métodos russos havia aspectos universais, suscetíveis, portanto, de aplicação em outras latitudes. Da experiência russa, segundo ela, algumas lições poderiam ser extraídas: o primado do movimento sobre a organização, devendo esta servir àquele, e não o contrário, como freqüentemente ocorria no socialismo da parte ocidental da Europa. Massas desorganizadas podiam, por outro lado, em determinadas condições, irromper na cena política com um impacto imprevisto, era preciso que os revolucionários estivessem atentos para a hipótese. Ao partido e aos sindicatos caberia ascultar o movimento, conferir-lhe sentido e direção, e não pretender ditar-lhe as formas e os ritmos. Outra referência: a importância decisiva da ação para a formação das consciências. Assim, uma ação prática poderia equivaler a milhares de palavras. Rosa destacava o papel da greve de massas, com caráter político, que tanto impressionara os contemporâneos. A greve de massas fora uma escola de política melhor do que muitos textos pedantes, a que só os iniciados tinham acesso.

As formulações de Rosa chocavam. Sindicalistas e dirigentes do partido mobilizaram-se contra suas idéias. Agora, era ela a revisionista. A perseguição foi cruel. Os homens responsáveis pelos aparelhos de organização saíram à caça, condenando-a como anarquista e espontaneísta, termos terrivelmente pejorativos na tradição socialdemocrata.

Rosa se viu vencida em toda a linha. Discriminada e tolhida, passou a ter dificuldades para publicar seus escritos e para veicular suas falas, praticamente confinadas a cursos nas escolas políticas do partido. Foi neste período, e até 1914, que, apesar das divergências, reaproximou-se dos bolcheviques, constituindo com eles a ala de esquerda da socialdemocracia internacional. A maior vitória que tiveram, em 1907, no congresso de Stuttgart, consistiu em aprovar uma resolução contra o perigo de uma guerra imperialista. No caso de sua eclosão, os socialdemocratas de todo o mundo tinham a obrigação de se oporem com todas as forças à carnificina e convertê-la em guerra civil pela destruição do sistema capitalista.

Não foi o que aconteceu.

Quando teve início a I Grande Guerra, em agosto de 1914, os principais partidos socialdemocratas, a começar pelo alemão, votaram os créditos de guerra e participaram alegremente da mobilização das sociedades. Em Berlim, onde estava Rosa, prevaleceu um clima de linchamento. Bandos armados percorriam as ruas à cata dos opositores da guerra. No ambiente dos cânticos de morte, nada restou senão um silêncio amargurado. Como compreender aquilo que ela chamaria mais tarde de imobilidade de cadáver do proletariado alemão, no qual Rosa depositara tantas esperanças?

Já uma mulher madura, na plena posse de suas faculdades, Rosa não se desesperou. Passou a articular os pouquíssimos que se mantiveram numa atitude crítica. Criaram uma revista, Die Internationale, imediatamente proibida. Por suas atividades, consideradas subversivas, Rosa passou na cadeia quase toda a guerra. Em fevereiro de 1915, foi condenada a um ano de prisão, acusada de proferir discursos antipatrióticos (leia-se: antimilitaristas). Uma vez livre, em fevereiro de 1916, mal teve tempo de fazer fosse o que fosse. Em julho de 1916, voltou à prisão, onde ficaria até novembro de 1918, quando foi solta pela revolução triunfante.

Na cadeia, viveu no desespero da angústia, tentando acompanhar os acontecimentos. Fez o que pode: sob o pseudônimo de Junius, redigiu um libelo contra as tendências hegemônicas no socialismo alemão: A crise da socialdemocracia. Participou da formação de um grupo alternativo: Spartacus. O nome já era uma denúncia. E um programa. As massas trabalhadoras haveriam de despertar do torpor. A revolta acabaria por despontar no horizonte. A revolução era uma necessidade histórica.

A partir de 1917, começou a se desenhar a sonhada -- e desejada -- reviravolta. No começo do ano, as greves na Alemanha. Em fevereiro, a revolução russa, varrendo o tsarismo invencível. Ao longo do ano, a radicalização dos movimentos. E Rosa atrás das grades, impotente, mas poderosa, através das cartas, fragmentos de pensamentos e de vontades, debatendo com os bolcheviques, em sua cela, como um solitário lutador de boxe dando socos no ar, elogiando sua vontade e determinação, mas alertando para os perigos e para as derivas ditatoriais, desanimada, animando, morta de tristeza e estimulando a alegria, aquela energia perdida, esvaindo-se, incentivando, invectivando. Sua correspondência de prisão nestes tortuosos e torturantes meses é o atestado de como o ser humano, agarrado a suas esperanças, pode atravessar abismos, no mais fundo de sua desdita.

Na Alemanha, desde setembro de 1918, tudo começou a andar muito rapidamente. Da declaração do Alto Comando de que era preciso fazer a paz à constituição do governo de União Nacional, com participação dos socialdemocratas. Da repressão ao motim dos marinheiros em Kiel à generalização dos movimentos sociais que levaram, afinal, à fuga do Imperador e à proclamação da República.

Rosa recuperou a liberdade em meio aos delírios mais enlouquecidos. Imediatamente assumiu um posto na redação do jornal espartaquista. De um lado, denúncia contundente da maioria socialdemocrata, insensível às potencialidades da revolução social. De outro, conselhos de prudência aos jovens radicais de sua própria tendência política, insensíveis aos perigos do voluntarismo.

Em fins de 1918, participou da fundação do Partido Comunista Alemão com esperança e receio. Como lembrou Isabel Loureiro, Rosa disse, referindo-se a seus sentimentos: tenho um olho que ri, outro que chora. Síntese perfeita de um estado de espírito dilacerado, dividido entre as perspectivas históricas -- que pareciam se abrir -- e as propostas demasiadamente sectárias de seu próprio partido -- que apontavam para um precoce fechamento.

Manteve-se assim até o fim. À procura de um ponto de equilíbrio inalcançado.

Quando explodiu a insurreição espartaquista, na primeira semana de janeiro de 1919, deve ter entrevisto a derrocada. Naquela Berlim que se tornara muito insegura, em meio a matanças indiscriminadas de seus companheiros de partido, recusou a oferta de abrigo oferecido pelo velho Leo de tantas aventuras. E caminhou serena para a tragédia, parecendo não querer sobreviver a mais um fracasso. Um bando de energúmenos, conforme confissões apuradas mais tarde, bateu coronhadas em sua cabeça, antes de despedaçá-la. Arremessaram-na num canal e beberam à sua morte. O corpo, desfigurado, foi encontrado meses mais tarde. Mas sua trajetória, depois de oitenta anos, ainda inspira atenção, ternura e nobres sentimentos.

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Daniel Aarão Reis Filho é Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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