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A vitória de Roberto Campos

Luiz Sérgio Henriques - Setembro 1999
 

Tem algo a nos ensinar a candidatura de Roberto Campos à Academia Brasileira de Letras, na vaga aberta com o desaparecimento de Dias Gomes. No plano da cultura, eis que se reapresenta, de modo inesperado, a contraposição entre direita e esquerda, representada a primeira posição por um intelectual que se pode descrever, sem exageros, como um fundamentalista de mercado; e a segunda por um dramaturgo que foi, a seu tempo, homem do Partido Comunista e se definiu, em relato autobiográfico, como "apenas um subversivo".

Do ponto de vista do percurso existencial e intelectual, nada mais distante e até antagônico: daí as reações de espanto e as manifestações de desagrado com a possível "sucessão" na ABL, que se intensificam na direta proporção dos tons fortemente polêmicos e extremados que assinalam a extensa produção intelectual de Roberto Campos. No universo mental deste último, ser de esquerda é uma confissão automática de parvoíce e obtusidade. Na melhor hipótese, as boas intenções dos que ousam criticar o capitalismo pavimentam, irrevogavelmente, o caminho do inferno stalinista.

Mas em toda esta questão há também, por assim dizer, um lado formal. A ABL não é mais a entidade empoeirada contra a qual se lançaram os modernos. Tem uma identidade própria, uma vocação que se explicita em inúme- meras atividades em defesa de nossa língua e cultura. Acolhe homens e e mulheres de variadas orientações, na política, na literatura e na vida. Abre-se não apenas para escritores consagrados, como Jorge Amado, João Ubaldo ou Nélida Piñon, mas também para "notáveis" da sociedade brasileira. Temos de convir que ela, a ABL, realiza esta síntese de cultura e sociedade de um modo razoavelmente equilibrado e democrático. E Roberto Campos, deste ponto de vista, lá não estaria deslocado: representa, gostemos ou não, um lado real da sociedade, o lado que demonstra uma fé de carvoeiro nas virtudes do "mercado". O fato de possivelmente suceder a um "subversivo" deve ser encarado como acidental e acessório.

A isto se acrescenta um elemento de certo modo novo: nos últimos anos se acentuou o elemento generosamente democrático do pensamento da esquerda, em oposição ao estilo arrogante, triunfalista e totalitário dos corifeus da direita. Só um exercício de realismo mágico nos permitiria imaginar o que diria o dramaturgo, mas desconfio que o velho comunista Dias Gomes não oporia vetos ideológicos à sucessão. Talvez reagisse com a arma irresistível da ironia, reconhecendo que o adversário "venceu", que o mundo está cada vez mais parecido com as idéias de Campos, tal como o próprio Campos vaidosamente apregoa. Por isto mesmo, virou um lugar tão cruel, tão cínico e tão desesperadamente necessitado dos valores socialistas e humanistas que Dias Gomes dignificou em vida.

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Luiz Sérgio Henriques é editor de Gramsci e o Brasil.



Fonte: O Tempo, Belo Horizonte, 9 set. 1999.

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