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Pós-comunismo à italiana

Luiz Sérgio Henriques - Março 1998
 

A recente passagem de Romano Prodi, primeiro-ministro italiano, pelo Brasil chamou a atenção para a conjuntura política daquele país, em geral ignorada entre nós. Suscitou também algumas aproximações que trazem a marca da preocupação obsessiva de nossos dias: a Itália, país politicamente confuso e economicamente à beira da ruína, há apenas alguns anos, hoje é um caso de êxito. Um bom exemplo para as famosas "reformas" brasileiras, de que tanto se fala e às quais ninguém pode se opor, sob pena de desqualificação política e intelectual.

Tentemos analisar um pouco mais de perto este novo milagre italiano. Especificamente, o foco pode ser voltado para a trajetória do PDS, os democratas de esquerda, que constituem o principal desenvolvimento do velho Partido Comunista -- e, ao mesmo tempo, o eixo de sustentação da coalizão de centro-esquerda, o "Ulivo", à frente da qual está, exatamente, Prodi.

Em 1989, imediatamente após a queda do Muro de Berlim, Achille Occhetto, então secretário do PCI, dá início ao processo de constituição de uma nova formação política. A matriz do comunismo histórico estava esgotada, e seu colapso não dizia respeito apenas à União Soviética ou aos países do Leste europeu. Atingia também forças, como o PCI, que ao longo do tempo se haviam caracterizado por uma notável originalidade política, um reconhecido distanciamento em relação à experiência do comunismo no poder -- bem como, e não em último lugar, uma contribuição indiscutível à consolidação da democracia italiana após a catástrofe a que o fascismo conduzira o país na Guerra Mundial.

Não se tratava, pois, de uma transformação qualquer. (Aliás, se se quiser um documento interessante sobre o drama político e humano que atravessa o debate sobre o fim do PCI e a formação do PDS, entre os anos 1989 e 1991, vale sugerir o filme de Ettore Scola, "Mario Maria Mario", disponível numa boa locadora de vídeo.) E a crítica maior que se pode fazer à operação de Occhetto é que ela tendeu a cancelar exatamente aquela originalidade política e cultural que assinalava o velho PCI.

Nenhuma nostalgia (em excesso...) do comunismo nesta crítica. Antes, a constatação -- feita, de resto, por expoentes da esquerda do PDS, como Giuseppe Chiarante -- de que o PCI da segunda metade dos anos 80 também estava submetido à devastadora pressão desta "revolução do capital" que temos vivido. Um dos sintomas mais decisivos desta subordinação, ainda segundo Chiarante, foi a progressiva renúncia à elaboração de um "ponto de vista de esquerda" em matéria econômica, nas novas condições em que tende a desaparecer o "operário-massa" e a grande fábrica moderna.

O governo Prodi se forma depois das eleições de 21 de abril de 1996, que marcaram a derrota da nova e agressiva direita italiana, capitaneada por Berlusconi, o magnata das telecomunicações. Nesta altura, o PDS tinha à frente um novo líder, Massimo D'Alema. Além disto, a partir de 1992 uma tempestade havia varrido do mapa político a velha classe dirigente, organizada em torno da Democracia Cristã e do Partido Socialista: essa tempestade, como se sabe, ocorreu por uma via judiciária (a Operação Mãos Limpas) não destituída de ambigüidades. Uma delas, por exemplo, a possibilidade de gerar um reacionário sentimento "qualunquista", um sentimento de indiferença do homem comum ("l'uomo qualunque") ante a política.

D'Alema estruturou a ação de seu PDS em três linhas: sustentar a coalizão de governo, renovar as regras da democracia e, pela segunda vez nos anos 90, reabrir o processo constituinte de uma nova formação da esquerda. Tem argumentos dignos de nota: ao optar vigorosamente por governar, o PDS não quer ser uma esquerda vinculada apenas ao protesto social, sem capacidade propositiva. Ao liderar a construção de novas regras (na chamada Comissão Bicameral), pretende "europeizar" a Itália, dotando-a de uma democracia que permita a "normal" alternância entre os blocos da direita e da esquerda.

O terceito ponto da agenda é, precisamente, um "work in progress". Os "estados gerais" da esquerda, recentemente reunidos, abriram um perído de debates, cujo desfecho será um novo partido de esquerda, integrado de pleno direito no Partido Socialista Europeu -- este último, ainda uma confederação de partidos nacionais, mas que sem dúvida aponta com justeza para a nova dimensão supranacional em que se tomam certas decisões.

O PDS de D'Alema não é -- não quer nem pode ser -- o protagonista único do bloco progressista (de resto, a Refundação Comunista não se deixa cancelar, ela que encarna "a outra esquerda"). Sofre, é indiscutível, a tentação moderada, à qual, sem dúvida, sucumbiu Blair e seu novo trabalhismo. De todo modo, é peça de um importante laboratório político, que vale a pena acompanhar sem esquematismos.



Fonte: O Tempo, Belo Horizonte, 24 mar. 1998.

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