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Claro enigma

Luiz Sérgio Henriques - 1998
 

Por qualquer lado que se olhe, a Copa do Mundo adquire todos os aspectos de megaevento típico de um mundo verdadeiramente globalizado. Quase quarenta bilhões de telespectadores, em termos de audiência acumulada, supõe-se que devam assistir aos jogos. A competição, ela própria, é organizada por uma espécie de multinacional, a Fifa, cujas associações filiadas superam em número os membros da ONU. E mesmo o mais distraído e "alienado" dos torcedores já não pode ignorar a presença massiva, invasora, de multinacionais de verdade, patrocinando equipes e craques e assinalando simbólica e materialmente, também no universo paralelo do futebol, o ocaso de uma época em que os valores esportivos assumiam papel de maior relevo.

Unimo-nos, naturalmente, em torno da "seleção": indisfarçável o orgulho que sentimos ao nos vermos como o segundo time no coração de torcedores de tantos outros países. Corre o mundo a identificação do futebol e do craque brasileiro com os atributos da arte popular -- e, de fato, gostamos dessa identificação, que praticamente se incorporou à imagem que fazemos de nós mesmos. Somos criativos, latinos, bons de bola e de samba, não temos a cintura dura dos gringos, tivemos Garrincha e Pelé, temos Denilson e Ronaldo.

Que o leitor nos perdoe o impressionismo ou o gosto por analogias arriscadas, mas quem sabe está aí uma pista para entender o modo brasileiro de ser e estar no mundo. Garrincha, por exemplo. Há exatos quarenta anos, o anjo de pernas tortas -- quase uma impossibilidade física -- desmontava defesas tidas como imbatíveis, a começar pela da então sólida União Soviética. Mané encarnava a rebeldia, a criatividade, o paradoxo de um mesmo e inevitável drible. Outra comparação arbitrária: de Garrincha se pode dizer o que Caetano uma vez disse de João Gilberto, o mestre da eterna bossa. Nunca ninguém se reinventou tanto, parecendo sempre mudar tão pouco.

E assim -- desculpem a repetição -- gostamos de ser: o verso "gauche" do poeta Carlos, o violão dissonante de João, o drible torto de Mané, a arquitetura curva de Niemeyer ou a ... Sudene de Celso Furtado definem, cada qual a seu modo, a sensação continental, o sentimento de mundo a ser desbravado, a ser inventado, que temos nós, brasileiros. O Brasil, tem-nos dito ultimamente, com insistência, o sociólogo Luiz Werneck Vianna, é "América": uma América diferente daquela outra, anglófona, e que poderia ser até melhor do que a "matriz". De novo, quem sabe...

Contraria este modo de ser, esta metafísica, se quiserem, a posição de meninos bem-comportados, incapazes de fazer pipi na cama da globalização neoliberal. Podemos falar mal dos "políticos", do Congresso (um esporte nacional muito perigoso, aliás: como ninguém de boa-fé ignora, o pior Congresso é muitas vezes melhor do que nenhum Congresso!), criticar masoquistamente o "povinho" que Deus fez habitar a terra paradisíaca, só para equilibrar as coisas. No entanto, no fundo de cada um resta intacta a certeza, muitas vezes inexpressa, inarticulada, de participar de uma experiência nacional original sob muitos aspectos e, em seus pontos mais altos, avessa a maniqueísmos, malandramente dialética, capaz de conciliar gostosamente extremos em contradição. Dona Flor, já se disse à exaustão, não vê sérios motivos para escolher entre o finado amante boêmio e o previsível esposo vivo, que funciona com a regularidade de relógio suíço...

A intenção, aqui, não é endossar acriticamente as versões mais edulcoradas da "cordialidade" brasileira, muito menos modernizar o "por que me ufano" do velho Afonso Celso ou, ainda, engrossar o coro complacente do eterno país do futuro. O fato é que, de algum modo, estamos conscientes do enorme, contraditório e penoso caminho percorrido no sentido da criação de um país moderno, com estrutura social complexa (apesar do campeonato mundial de desigualdade cujo caneco as elites teimam em trazer para casa) e com a mais bem-sucedida e diversificada estrutura econômica entre os países do Sul do planeta -- pelo menos até que estas mesmas elites, num acesso incontido de bovarismo primeiro-mundista, virassem as costas para este nosso lado "América", rebelde, criativo, mal-comportado, de fronteira, que coloca o tema do crescimento em nosso código genético.

Diante de cada experiência que nos fazem -- e neste momento somos o gigantesco laboratório vivo de uma reforma liberal -- sabemos a pergunta certa para fazer de volta. A dimensão "americana" exige, nesta terra, que os filhos vivam melhor que os pais, que o país tenha um projeto socialmente inclusivo e culturalmente original. É isto o que temos vivido nesta década de tediosa e plana hegemonia liberal-conservadora? Esta, a pergunta secreta, o claro enigma de que somos incuráveis portadores. Os que não derem respostas à altura serão derrotados, mais cedo ou mais tarde, de um modo ou de outro. Não é nada pessoal: é só porque o país é muito maior do que eles.



Fonte: O Tempo, Belo Horizonte, 16 jun. 1998.

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