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Em busca do centro

Luiz Sérgio Henriques - Julho 1998
 

O vocabulário tantas vezes belicoso dos jogos de futebol nos traz, nestes dias de Copa do Mundo, a expressão "mata-mata". Com ela se designam aqueles jogos em que, por morte súbita ou disputa de pênaltis, tem de haver um só vencedor. O time derrotado pode até carregar em torno de si uma aura de legenda, como o Brasil de Ademir e Zizinho de 1950, o escrete húngaro de 1954 ou o carrossel holandês de 1974. Nada disso importa: resta-lhe apenas despedir-se da competição, tomar o rumo de casa e eventualmente passar a mover-se num território lendário, em que os passes de Zizinho, os gols de Puskas ou a infernal movimentação de Cruyff se desenham para sempre, agora sem os contratempos da vida real.

Felizmente, não é assim a política. A não ser em situações extremas, em que se trata de eliminar o "inimigo interno" sem deixar restos, a competição minimamente democrática em muito pouco se assemelha a um torneio do tipo "mata-mata". Nas sociedades ditas "ocidentais" -- o termo é aqui empregado em seu sentido gramsciano, vale dizer, sociedades em que Estado e sociedade civil assumem uma relação equilibrada --, a luta política adquire características de uma prolongada "guerra de posições", em que os adversários lutam em cada trincheira e buscam não apenas vencer, mas principalmente convencer. Não se trata, pois, de empolgar o poder num golpe da fortuna, mas de incidir sobre as relações de força existentes, conquistar corações e mentes para um projeto alternativo de sociedade e de Estado, construir lenta e seguramente os elementos de uma nova hegemonia.

Ora, a sociedade brasileira, há muito, é do tipo ocidental. Aqui soa como leviandade qualquer estratégia baseada na "guerra de movimentos", no ataque direto e frontal à fortaleza do Estado, à sala onde supostamente se localizam os comandos. Trata-se de um dado estrutural, que delimita as possibilidades da ação política e da própria mudança social. E as forças de esquerda, se quiserem resgatar a capacidade de conduzir o mundo numa direção para a qual ele espontaneamente não tende -- usando uma expressão de Antônio Barros de Castro --, devem daí deduzir os pontos qualificantes de sua iniciativa política.

Impossível, nesta ótica, ver o embate eleitoral de outubro próximo como um confronto direto e irrecorrível entre direita e esquerda, entre Lula e FHC, o santo guerreiro contra o dragão da maldade. O pior que pode acontecer à aliança de esquerda é, deixando-se levar pela euforia ou pela depressão segundo o ritmo inconstante (e muitas vezes suspeito) das pesquisas presidenciais, não levar até o fim a difícil elaboração de uma visão estratégica da realidade. Esta visão implica, desde logo, uma constatação duríssima: a crise dos anos 80 e a estratégia de "reformas" dos anos 90 significaram por toda parte um reforço considerável daquilo que, com um eufemismo, se pode chamar "poder do mercado". E mercado, evidentemente, designa os grupos fortes da sociedade, com sua renovada capacidade de impor modos de acumulação, modelos de sociedade e até de comportamento individual.

Pode-se dizer sem medo de acusações de "desvio", e a partir de uma perspectiva abertamente de esquerda, como é o nosso caso, que não existe rigorosamente saída à esquerda para a presente crise brasileira. Também não seria aceitável o conformismo dos que não vêem alternativa a este ciclo de reformas comandadas pelo partido liberal no poder, com sua enorme carga de concentração econômica, exclusão social e restrição oligárquica da democracia política. Mas só depois que o pessimismo da inteligência nos coloca diante de um impasse deste porte, é que se torna proveitoso recorrer ao otimismo da vontade para buscar a capacidade estratégica que até agora nós, da esquerda, nem sempre tivemos.

Assim, é vital atuar para modificar as orientações atuais do centro político. A preocupação com o estrangulamento das perspectivas de crescimento, com os sinais visíveis de desintegração social, com a inserção crescentemente subalterna do país no processo da globalização -- esta preocupação não é prerrogativa da esquerda, mas pode constituir terreno de encontro com forças e personalidades do centro político, interessadas numa agenda que restaure as margens de autonomia do Estado e da sociedade brasileira.

A conquista de governos estaduais significativos e a ampliação da representação parlamentar nas assembléias e no Congresso são objetivos factíveis e desejáveis. Experiências de governo estadual podem gerar inovações importantes e implicar redistribuição de poder e recursos num sentido democrático. A maior força parlamentar impõe-se por si só, numa época em que o partido liberal tem veleidades de (contra) revolução permanente. E, seja qual for o resultado da disputa presidencial, a esquerda restará em campo com mais vigor e capacidade de atração, apta a um melhor desempenho naquela situação de cerco recíproco que a política moderna designa às forças em confronto.

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Luiz Sérgio Henriques é editor de Gramsci e o Brasil.



Fonte: O Tempo, Belo Horizonte, 2 jul. 1998.

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