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Vida que segue

Luiz Sérgio Henriques - Julho 1998
 

Vivido de modo cego, o jogo de futebol inspira certamente uma paixão banal, com seu cortejo de fanatismo e violência vazia. Mas vivido com um certo distanciamento crítico, pode ser admirado como o meio expressivo de momentos tão belos como aqueles que Chico Buarque um dia chamou de "o sentimento diagonal do homem-gol" ou "a emoção da idéia quando ginga". E pode se tornar também, visto por este outro ângulo mais crítico, uma forma "sui generis" de abordar o fato social, de tomar o pulso das sociedades em determinadas conjunturas.

Aproveitemos, pois, a circunstância da Copa recém-terminada, para frisar alguns temas que nos chegaram em meio à profusão de imagens, debates e comentários. Quando a câmara de TV passeava pelos atletas no momento do hino (quase sempre, aliás, peças belicosas, sublinhando a emergência de Estados-nação num ambiente hostil, o que levava os respectivos cidadãos a "desafiar a própria morte"), era curioso ver, por exemplo, a realidade multirracial de países como a Holanda, a Inglaterra ou a França, espelhada na policromia dos rostos. Uma realidade, por seu turno, que não se faz sem tensões, muitas vezes patentes em divisões abertas no próprio "grupo", como no caso da seleção holandesa: aí brancos e negros parecem conviver precariamente num regime de separação, tanto nos treinos e concentrações quanto nas comemorações de um gol.

No caso dos novos campeões, a conotação política é ainda mais evidente. A seleção da França reúne atletas recrutados nos subúrbios pobres, entre os filhos da imigração. Zidane, o craque do time, é de origem argelina; Thuram é um negro de Guadalupe, no Caribe; e Djorkaeff é descendente de armênios. Acontece que a França não é só o país da Revolução de 89 ou da experiência da Frente Popular dos anos 30; é também o colaboracionismo de Vichy ou a violência e a tortura das guerras coloniais. Em nossos dias, o direitista Le Pen recebe este legado sombrio e, com seus 15% de votos, reencarna as piores taras de xenofobia, chauvinismo e racismo. Por isto, fiel a esta tradição antidemocrática, chegou a censurar asperamente uma equipe que, a seus olhos, era constituída de "franceses de papel", de representantes da imigração indesejada.

Não é sem razão que a França dos democratas se insurge contra a demagogia grosseira de Le Pen e a Frente Nacional. A França que amamos -- seus intelectuais de tradição igualitária, suas correntes políticas enraizadas nas camadas populares, de inspiração socialista ou comunista -- costuma definir a moderna questão da exclusão racial, e da exclusão social "tout court", como um divisor de águas à maneira daquele que, no outro fim de século, foi o caso Dreyfus. A França, hoje, tem os seus "sans-papier", como nós temos os "sem-terra". Em torno deles se congrega o espírito democrático em suas variadas expressões, inclusive -- é sempre bom lembrar -- as correntes advindas do solidarismo religioso.

A violência dos "hooligans" e "skinheads" é também outro sinal de profundo mal-estar em sociedades como a inglesa e a alemã. Do mesmo modo, ainda aqui o componente irracional, representado por grupos e ideais neonazistas, se faz perturbadoramente presente. E o policial francês em coma recorda-nos as palavras cruas de Brecht, que nosso filósofo Leandro Konder traduz e cita: ainda está fecundo e procriando o ventre de onde isso (o fascismo e o nazismo) veio engatinhando.

Este registro estaria incompleto se não mencionássemos, ainda que de passagem, o Brasil e a seleção brasileira. É sedutora a idéia de considerar a seleção como metáfora do país, com todo risco implícito em analogias. No universo paralelo do futebol, nossa seleção aparece como superpotência, capaz de fascinar críticos e públicos das mais diversas procedências. Chega a ser comovente ver, por exemplo, haitianos, equatorianos ou gente de qualquer parte embandeirar-se de verde e amarelo e atribuir ao jogador brasileiro talentos e capacidades próprios do verdadeiro artista. O futebol, sem dúvida, é uma das expressões possíveis do enorme potencial que tem este país, bem como a gente misturada e criativa que o construiu ao longo de uma interessantíssima experiência nacional prestes a completar apenas 500 anos.

Ao mesmo tempo, falta muita coisa: falta a organização esportiva, o esporte difundido massivamente, assim como falta a teoria e o estudo do esporte para enriquecerem a técnica e o potencial individuais. Explorando o raciocínio analógico, também ao país -- às suas elites -- tem faltado o pensamento estratégico que, só ele, pode arrancar-nos à apagada e vil tristeza de um destino subordinado e dependente. Uma economia que até duas décadas atrás era dinâmica, uma sociedade desde sempre cheia de feridas abertas: o mesmo ventre apodrecido denunciado por Bertolt Brecht, no qual se geraram recorrentemente experiências de autoritarismo político.

Mas, como gostava de dizer João Saldanha, vida que segue. Nosso país não vai perder.



Fonte: O Tempo, Belo Horizonte, 16 jul. 1998.

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