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A campanha e a guerra

Luiz Sérgio Henriques - Outubro 1998
 

Raciocinar por analogia nem sempre é um bom caminho: corre-se o risco de comparações arbitrárias, perdendo o que cada situação tem de individual e irredutível. Feita a ressalva, e encerrado o primeiro turno das eleições com a esperada (e festejada) confirmação do candidato-presidente, não há como deixar de advertir para o caráter bizarro, estranho mesmo, da última campanha eleitoral: uma campanha, como muitos observadores apontaram, sem debate, sem alternativas e quase sem política.

Uma campanha "estranha". Uma "drôle de guerre" -- eis-nos em pleno terreno das analogias -- foi o que caracterizou o primeiro ano da Segunda Guerra na frente francesa. Um guerra engraçada, em que reinava a calma na frente de batalha, enquanto surdamente se preparava a catástrofe nacional francesa, com a ameaça iminente da invasão nazista e a infâmia inapagável do colaboracionismo.

O silêncio e a calma que atravessaram a recente eleição tiveram o caráter bizarro daquela circunstância francesa. O cálculo feito era o de que uma das mais graves crises da história republicana, com um potencial ainda desconhecido de agravamento do "apartheid" social e de atrofia das instituições democráticas -- o cálculo, dizíamos, era que tudo isso passasse ao largo da campanha e dos foros do debate público. O fato de o Congresso nacional, por exemplo, não ter se tornado o cenário de debates e do esclarecimento possível não se deve à circunstância de deputados e um terço dos senadores estarem buscando a renovação dos mandatos nem à proverbial desídia dos "políticos". Tudo se passou, como a ninguém é dado ignorar, em função de uma estratégia deliberada, cujos beneficiários seria igualmente ocioso nomear.

Houve verdadeiramente momentos de extrema bizarrice. Vai ficar para sempre, na relação dos episódios esquisitos e até involuntariamente cômicos, a sucessão de declarações de eminentes membros da Justiça Eleitoral, inclusive aquele encarregado de dirigir todo o processo: a reeleição do presidente-candidato constituía um imperativo categórico da implantação do modelo econômico, nas palavras de Ilmar Galvão. E não se tratava propriamente de um ato falho, mas da admissão franca, à luz do dia e na presença de testemunhas, do caráter potencialmente autoritário do modelo em curso de implantação, com o controle quase totalitário dos meios de comunicação e a capacidade de tornar ridícula e quixotesca qualquer tentativa de opor-se a isto que se quer o rumo natural das coisas.

Do presidente-candidato, naturalmente, pouco ou nada se exigiu, a não ser a manutenção do "sorriso de aeromoça" (a expressão é da lavra do condestável do regime) em meio aos sinais de pane na aeronave. Nada de especialmente difícil nesses tempos de "marketing" eleitoral onipotente, ou quase, ao mesmo tempo que a mídia, com exceções que nem se contam nos dedos de uma das mãos, docilmente subscrevia, e subscreve, a teoria da origem exclusivamente "externa" da crise, esquecendo-se convenientemente do aprofundamento de nossas fragilidades no período pós-real.

Uma das particularidades da presente crise brasileira parece consistir na impossibilidade de lançar mão de um velho recurso: a estratégia de fuga para a frente. Com todos os limites e contradições, ir adiante mesmo aos trancos e barrancos sempre significou, afinal de contas, uma saída coerente com a vocação "americana", "de fronteira" de nosso país. Agora, o que se desenha à frente, sob a batuta de outro grupo de atores desse drama (exatamente, os dirigentes da área econômica e do Banco Central), é a aposta fideísta e subalterna no aprofundamento das célebres "reformas", já sob a tutela direta e franca do Fundo Monetário e dos outros organismos gestores da globalização neoliberal.

Vendo o movimento de todos esses personagens -- o ministro que cancela a possibilidade de alternativa eleitoral, o presidente do Congresso que programa o silêncio da instituição de acordo com as conveniências do candidato-presidente, o corpo de tecnocratas criado nas certezas do dogma liberal --, talvez seja um exagero retórico continuar a analogia do começo e evocar Laval e Pétain. Mas o certo é que a disposição de "dobrar a aposta" no receituário equívoco subentende uma vontade irreprimível de "colaborar", mesmo à custa da desarticulação ulterior da sociedade e da economia brasileira. "Fazer o dever de casa" -- é o que dizem e repetem, numa expressão psicanaliticamente duvidosa, que supõe meninos zelosos no cumprimento de ordens.

Terminada a "drôle de guerre", começou um período obscuro e trágico em que a honra da França esteve nas mãos de conservadores lúcidos, como De Gaulle, e da Resistência, apesar de tudo. Entre nós, terminou a campanha engraçada: agora reponta uma guerra de outro tipo, desta vez econômica, mas que também põe em risco o tecido social e a frágil democracia brasileira.



Fonte: O Tempo, Belo Horizonte, 7 out. 1998.

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