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Pinochet

Luiz Sérgio Henriques - Novembro 1998
 

O general Pinochet é um destes seres políticos teratológicos, que simultaneamente remetem ao mundo carcomido da guerra fria e à atualidade de certas opções de economia e sociedade que terminaram por se impor um pouco por toda parte. O pedido de extradição formulado pelo juiz espanhol Baltasar Garzón, o episódio de sua detenção na Inglaterra e as manobras diplomáticas que em torno do caso se tecem, tudo isto pode ser posto momentaneamente à parte, em benefício do exame dessa figura singular de "ridículo tirano" da Ibéria americana.

Pinochet, como dissemos, é uma criatura e um ator do tempo da guerra fria e da contraposição entre blocos. Um tempo que legitimava, sem maiores tormentos de consciência, seguidas interrupções do processo democrático, particularmente na América Latina, em nome do combate à expansão do "comunismo internacional". As doutrinas de segurança nacional indicavam um "inimigo interno" a caçar e destruir fisicamente. E no golpe de Pinochet, houve uma circunstância peculiaríssima: tratou-se de liquidar sumariamente, com o recurso acintoso a prisões, torturas e assassinatos políticos, uma experiência de transição democrática para o socialismo, respaldada pelas regras do jogo eleitoral.

Evidentemente, contra a possibilidade de êxito de uma tal experiência levantaram-se os cruzados de sempre. Até as pedras sabem que o general Pinochet nunca esteve sozinho em sua aventura liberticida, contando com o apoio decidido do governo americano e de confrades vizinhos, precursores de uma espécie indesejada de mercado comum: o Mercosul do terror, da tortura e dos desaparecimentos políticos.

Mas isto é a face carcomida do velho ditador: ele não acrescentaria nada à extensa galeria de déspotas do continente, se tivesse circunscrito sua ação ao tradicional "pronunciamiento" contra as instituições democráticas. Pinochet foi além: o Chile pós-golpe foi entregue, inerme, às experiências dos "Chicago's boys" de inspiração neoliberal, consagrando uma parceria nada casual entre o liberismo econômico e o autoritarismo político; uma parceria, aliás, muito mais freqüente do que gostariam de admitir os crentes do livre mercado.

E aqui, exatamente, surge a face "moderna" de Pinochet: em não poucas iniciativas e programas, o Chile veio a se tornar uma espécie de fazenda modelo do projeto liberal. No Chile querido e amado de Allende e Neruda, aplicou-se, sem anestesia, o ideário privatista radical de Friedmann e consórcios; um ideário que, apesar de todas as fissuras no edifício social e de toda a hipoteca militarista, durante algum tempo veio apregoado como a "solução final", o modelo de sociedade finalmente encontrado. (Este exemplo foi insistentemente agitado no Brasil até em época muito recente, quando nossas elites pareciam esquecer-se, como de resto ainda parecem esquecer-se, da dimensão verdadeiramente revolucionária que caberia, no mundo, a um Brasil democrático, próspero e justo.)

"Malgré lui même", Pinochet é também moderno por um aspecto que os acontecimentos destes dias vão contribuindo para pôr em destaque. A iniciativa do juiz espanhol aparentemente caminha no sentido de uma espécie de universalização dos princípios da justiça: uma outra face da globalização, até o momento esquecida e subordinada à farra dos mercados financeiros desregulados em escala mundial. Aquela iniciativa, assim, pode vir a inscrever-se numa lógica maior de construção de instrumentos jurídico-políticos adequados, capazes de ordenar e sobrepor-se à exaltada anarquia dos mercados. Situa-se, ainda, num momento de crise evidente da globalização liberal, no qual, ainda por cima, importantes países europeus (e, apesar de muitíssimas contradições, até os Estados Unidos, de Bill Clinton) elegeram, e elegem, governantes social-democratas.

Pode-se argumentar que esta social-democracia vive um momento de escassa criatividade política e espírito reformista ainda mais contido. Pode-se dizer também -- como parece evidente no caso dos Estados Unidos e da Inglaterra, com a política clintoniana em geral favorável ao "big business" e a moderadíssima terceira via de Blair -- que ela, a social-democracia, se movimenta num terreno claramente hegemonizado pelos antecessores liberais, que demarcaram o terreno e as questões passíveis de disputa política. Mais substantivamente, pode-se até afirmar que nada garante não ser possível, como saída da grande crise deste fim de século, um brutal rearranjo de poder e de riqueza em benefício do centro capitalista.

Mesmo assim, é preciso constatar que pelo menos se abre a possibilidade de mandar à lata de lixo da história a modalidade cruel de guerra de classes retomada por Reagan, Thatcher e seus sangrentos amigos da periferia, como Pinochet, se é que deve avançar a consciência civil e o senso de justiça de uma humanidade no caminho de sua unificação.



Fonte: O Tempo, Belo Horizonte, 4 nov. 1998.

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