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Dom Cappio e o São Francisco

Marco Antônio Tavares Coelho - Outubro 2005
 

Como a opinião pública está  voltada para a crise política, o governo federal vai intentando iniciar as obras da transposição de águas do São Francisco, passando por cima da ampla frente  contrária a esse malsinado projeto. Oposição que é  apoiada por decisões da Justiça e do Tribunal de Contas da União. Para a maioria das pessoas que vivem distantes do vale do São Francisco pode até parecer estranho o acirramento dessa disputa, controvérsia  que gira em torno de um empreendimento que aparentemente  beneficiaria  os brasileiros que vivem  no Nordeste setentrional. 

Procurando esclarecer essa questão, resolvi acelerar a publicação de uma pesquisa  que  venho fazendo há três anos sobre  o São Francisco, com o objetivo de mostrar os  erros cometidos nas obras realizadas no grande rio,  destacando o plano do desvio de suas  águas. Daí a publicação, pela Editora Paz e Terra, do livro Os descaminhos do São Francisco, que  será lançado em princípios de outubro, divulgando inclusive depoimentos dos governadores de Minas Gerais, Bahia e Sergipe.

Nesse livro assinalo a contribuição do São Francisco na vida brasileira, desde os tempos coloniais, quando  foi o caminho que facilitou a devassa dos sertões. Recordo igualmente o papel do "rio dos currais", que, na fase da corrida para as minas gerais, possibilitou a sobrevivência nas montanhas daquela alucinada gente interessada somente em achar ouro e diamantes. Destaco como o grande rio foi o eixo daquele modo de vida  que pode ser caracterizado como a "civilização" do São Francisco, marcada pela expansão da pecuária, pelo domínio das sesmarias e pelo aniquilamento da população indígena. Graças a esse dado da geografia tornou-se ele  o  rio da unidade nacional, com suas barcas enfeitadas pelas carrancas e com seus "vapores" que, durante oito décadas, tentaram imitar  as peripécias no Mississipi, quando, na verdade, logo  passou a ser a rota de fuga dos nordestinos para o sudeste.

Depois, superando uma  fase de decadência, ele voltou a ser uma peça básica na vida nacional, com a utilização de suas águas para acionar as turbinas das centrais elétricas. O Brasil, então,  vibrou com os  feitos da engenharia  – Paulo Afonso, Três Marias, Itaparica, Xingó e outros. Com isso, os engenheiros foram os arautos  do progresso. Mas, em contrapartida, poucas pessoas compreenderam o golpe terrível que essas  obras acarretaram para a população ribeirinha. Porque esta viu-se forçada a abandonar a agricultura  nas margens e nas ilhas do Velho Chico e constatou o fim dos cardumes de surubins, pirás, dourados e matrinchãs.

Ademais, um fato ainda mais grave sucedeu  nos negros tempos da ditadura militar – a construção da imensa represa de Sobradinho no interior da Bahia, o maior lago artificial do mundo, dez vezes maior do que a baía da Guanabara, o que obrigou a transferência forçada da região de 72 mil habitantes e a submersão de quatro cidades históricas – Casa Nova, Sento Sé, Remanso e Pilão Arcado. Tudo isso feito na base de um decreto considerando a construção da represa uma medida de segurança nacional, a fim de  não permitir qualquer  discussão ou protesto diante daquela violência inominável, quando havia pelo menos uma alternativa melhor para regularizar o São Francisco, como denunciamos nesse livro. 

Chegamos, assim, ao quadro atual quando o governo de Lula pretende implantar o desvio de uma parcela das águas do Velho Chico, usando como pretexto a necessidade de abastecer o Nordeste setentrional. Para tanto, o ministro Ciro Gomes  lança mão de argumentos solertes, inclusive acusando os opositores desse plano de insensibilidade ante o flagelo de milhões de nordestinos. Exatamente a mesma argumentação utilizada pelos que abusam da "indústria da seca" para manter inalterada a situação calamitosa das populações pobres no semi-árido.

Por que esse lobby está empenhado em realizar tal  sangria no Velho Chico? O motivo é transparente: decidiu montar no Ceará e no Rio Grande do Norte amplos negócios dedicados à exportação de alguns produtos – frutas, camarões, flores, etc. -,  além de privilegiar  empreiteiras, proprietários de terras que seriam beneficiadas pelas obras, fornecedores de equipamentos, assim como os políticos que buscam manter seus redutos eleitorais. 

Ciro Gomes repete uma cantilena que foi pulverizada por Celso Furtado. Pois esse cientista, recentemente falecido, examinou a problemática da seca no contexto do subdesenvolvimento, indicando que ela é mais um problema social do que natural. Assinalou ainda que no semi-árido milhões de pessoas vivem na miséria, porque não foram enfrentadas questões essenciais na agricultura, como a excrescência da concentração de terra e rendas.  Em contraponto, indicou que uma minoria  ganha com a "indústria da seca", pois a seca é também um negócio.

Enfim, Celso Furtado demonstrou  a falsidade das análises que orientam a intervenção governamental quando desaparecem as chuvas no semi-árido, impondo exclusivamente obras de engenharia hidráulica.  Exatamente a mesma solução em se  baseia o projeto de Ciro Gomes. Apesar desse legado, o governo federal decidiu dar o nome de Celso Furtado ao eixo norte desse projeto. Assim, aos que prezam os ensinamentos desse mestre paraibano, resta somente comentar que, mais uma vez, confirma-se o ditado popular de que "a hipocrisia é a homenagem do vício à virtude".  

No livro Os descaminhos do São Francisco são relacionados outros argumentos  que condenam de forma inapelável o plano da transposição de águas.  Aqui acrescentaremos apenas mais um deles, de caráter político -  a forma arbitrária e ilegal do  comportamento de Ciro Gomes,  ao  tentar impor esse projeto a ferro e a fogo, no mesmo estilo dos procedimentos usados pelo regime militar. Uma vez  que,  pela lei federal n. 9.433, de 1997, os recursos hídricos devem ser administrados de conformidade com os comitês das bacias hidrográficas, em que participam,  ao lado de pessoas indicadas pelos  poderes públicos, representantes das  organizações da sociedade civil.

O Comitê da Bacia do São Francisco rechaçou o projeto do Ministério da Integração Nacional, que vem contando com o endosso da ministra Marina Silva. Pois esta, como Pilatos, lavou as mãos nas águas do Velho Chico ante a desabrida ofensiva de seu colega no governo, quando, na verdade, cabe ao seu ministério o zelo pelos problemas que afetam o meio ambiente.

Essa atitude do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco resulta de uma compreensão apoiada em sérios fundamentos. Depois de aprofundadas discussões   concorda em apenas permitir a transferência de águas para outras bacias quando o objetivo se restringe ao abastecimento  das populações e à dessendentação dos animais, nos casos de comprovada escassez de recursos hídricos e quando não houver alternativa de suprimento local nas regiões receptoras. Por isso discorda radicalmente do  eixo norte do projeto, mas admite examinar a situação do eixo leste, em função das necessidades das populações do agreste em Alagoas, Pernambuco e Paraíba.  Adianta, porém, que existem alternativas técnicas mais baratas do que o projeto da transposição.

Todavia, apesar dessa tomada de posição do Comitê da Bacia do São Francisco, decisão respaldada pela comunidade científica, pelos governadores da maioria dos estados da bacia, pelo Banco Mundial que se recusou financiar o projeto, o governo Lula  ainda não entendeu que é necessário ouvir a opinião pública.  

Por último, cabe esclarecer que, em relação aos que mais sofrem com a escassez de água – os disseminados pelo sertão –, é indispensável a realização de uma política  de convivência com a seca, assim como o esquimó convive com o gelo. Enfatiza-se, então,  a necessidade da construção de cisternas e de barragens subterrâneas, entre outras providências. 

Enfim, resta só dizer que dos bilhões de reais que o governo pretende malbaratar no projeto de Ciro Gomes, uma  parte  pode e deve  ser transferida para iniciativas como o projeto de Um Milhão de Cisternas Rurais e outra parcela deve ser destinada à revitalização do São Francisco, prioridade absoluta que corresponde aos anseios de todos que se irmanam  para salvar o Velho Chico.

2. Dom Cappio e o São Francisco. Folha de S. Paulo, 9 out. 2005.

Nos últimos dias a opinião pública comoveu-se com a greve de fome de Dom Luiz Flávio Cappio contra o início das obras de transposição do São Francisco. Esse protesto singular colocou no centro das preocupações do país um projeto destinado a usar parte das águas do grande rio em benefício de empreendimentos que apenas beneficiam um reduzido grupo de privilegiados. Com essa atitude, o bispo de Barra advertiu com veemência contra um projeto governamental que, embora apresentado como uma solução para os flagelos da escassez de água em áreas do Nordeste, fundamenta-se numa análise equivocada da seca e do semi-árido, contrariando as análises de Celso Furtado e de outros cientistas, assim como da Cáritas e da CPT.

Ou seja, de que ao invés de se "combater" as secas com soluções de engenharia hidráulica, deve-se desenvolver uma política de convivência com o semi-árido. (Por exemplo, impulsionando a construção de um milhão de cisternas.) Em segundo lugar, o projeto da transposição baseia-se na tese falsa de que a escassez de água na região impede a sobrevivência em condições dignas das populações – falsa porque não responsabiliza a estrutura social, econômica e política pelo atraso e a miséria no Nordeste.

Ademais, o projeto, que utiliza imensos recursos públicos, não tem por objetivo ajudar a população pobre, mas, isto sim, visa a impulsionar a exportação de produtos agrícolas. Ao lado disso, ele é socialmente injustificável porque desvia recursos que podem resolver a situação difícil da população no vale do São Francisco. Incorre também em outros erros absurdos: diminuiria a geração de energia elétrica no Nordeste; teria de fixar caríssimas tarifas pelo uso de águas transportadas por centenas de quilômetros e elevadas por bombas elétricas para vencer altitudes de mais de trezentos metros etc e etc. Por fim, como a legislação estabelece que a gestão dos recursos hídricos é da competência dos comitês das bacias hidrográficas e como o projeto foi rechaçado pelo Comitê da Bacia do São Francisco, órgão instituído exatamente para presidir a gestão do grande rio, o governo Lula, impulsionado pelo ministro Ciro Gomes, decidiu agir de forma prepotente, ao arrepio das leis, contando com a prestimosa colaboração da ministra Marina Silva, que lavou as mãos fugindo de sua responsabilidade pelas questões ambientais.

(Recorde-se que o Comitê não é intransigente, pois concorda com o atendimento do desvio de águas para fora da bacia, no caso da necessidade comprovada de atender exclusivamente ao abastecimento da população e à dessedentação de animais.)

Ao lado dessa lição pedagógica, os resultados dessa contenda com o ilustre prelado fornecem outras indicações. Assim as divergências demonstraram sobretudo que o projeto da transposição só agora começa a ser debatido pela opinião pública, uma vez que nem mesmo foi examinado nos estados banhados pelo grande rio. (Entre todas as inverdades propaladas pelo ministro Ciro Gomes, a mais espantosa é sua afirmação de que esse plano foi profundamente debatido no país.)

No panorama político revelou-se, portanto, um total desencontro de opiniões sobre o projeto. O PT, que sempre o combateu, sem qualquer pudor assumiu a posição de arauto desse descaminho. No PSDB, Aécio Neves aciona a Justiça, mas o cearense Lúcio Alcântara, seu companheiro de partido, faz força em sentido oposto. No PFL há governadores contra e outros a favor. Na Igreja Católica o quadro chega a ser espantoso. Se freiras, no Rio de Janeiro, saíram pelas ruas em apoio a Dom Cappio, bispos da Paraíba fizeram questão em discordar dessa figura que lembra bem a trajetória do eremita de Assis. Enquanto em muitas cidades brasileiras levantou-se um movimento de irrestrita solidariedade ao bispo de Barra, em Cabrobó, na Paraíba e no Ceará houve manifestações de apoio ao malsinado projeto. Na comunidade científica a grande maioria dos especialistas acompanha a postura crítica da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Porém, aqui ou ali, existem vozes divergentes de uns poucos cientistas. Também nos círculos governamentais nos bastidores sussurram críticas a essa confusão armada por um ministério que deixa de ser da integração do país, para se tornar um órgão da discórdia nacional.

Por fim, cabe dizer que, se o projeto da transposição não for enterrado para sempre, as desavenças podem se tornar ainda mais agudas e pode se aprofundar a cizânia entre as regiões e estados brasileiros. Atente-se para as previsões de que neste milênio as mais acerbas controvérsias no mundo se manifestarão em torno da disputa pelos recursos hídricos.

Enfim, essa tempestade em boa hora desencadeada por Dom Cappio, embora não queira dar a mão à palmatória, o governo viu-se forçado a ouvir e a atender ao candente protesto de um homem identificado em sua inteireza com a população ribeirinha, mudando o curso do que se pretendia fazer com o Velho Chico.

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Marco Antônio Tavares Coelho, jornalista e editor executivo da revista Estudos Avançados, da USP, é autor de Herança de um sonho. As memórias de um comunista e O Rio das Velhas - memória e desafios.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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