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A crise tucana

Hamilton Garcia de Lima - Fevereiro 2006
 

Algo tardiamente, FH transpôs a linha das conveniências - o PSDB também está no foco de algumas investigações no Congresso - e expressou aquilo que a maioria dos brasileiros (85%) já percebeu: o PT se corrompeu pelo poder ou, na linguagem sociológica de FH, Lula se transformou "em representante da nova fração de classe formada pelos gestores pouco ortodoxos do dinheiro alheio". Mas será que a mudança de FH impulsionará o PSDB a rever a tibieza de sua crítica à corrupção sistêmica no Brasil, plasmada lá atrás em seu moderado engajamento na luta contra Collor?

No mesmo artigo no GLOBO, FH acusou "os operadores dos mercados financeiros, ingurgitados de tantos juros", pela apatia geral diante dos escândalos do atual governo. Esta é apenas parte da verdade, pois tais operadores não são os únicos a atuar sobre o sistema político. O correto seria dizer que o ingurgitamento atingiu em cheio, pela via dos "dutos", a classe política, inclusive o próprio PSDB, que parece receoso em tratar o tema com o despreendimento que ele exige.

O PSDB, ao se manter dúbio quanto aos rumos da política econômica atual - critica os juros, mas quer Palocci - perde uma chance histórica de reverter sua própria crise, originada na reeleição de FH e na truncagem de suas preocupações sociais e promessas de crescimento econômico, ambas comprometidas pela promoção de uma política de ingurgitamento de juros para sustentar o dólar depreciado.

Em pelo menos dois pontos a crise atual do PT coincide com a crise tucana dos anos 90: na traição programática do reformismo histórico (socialdemocracia) e na lassidão ética diante dos padrões sub-republicanos de administração pública vigentes.

Isto aponta para o esgotamento de um projeto e sua dupla face (tucano/petista): o reformismo-pragmático como alternativa ao padrão elitista e conservador da modernização brasileira. A dimensão trágica deste evento está na falta de perspectiva de uma solução moderna tanto para a crise de estagnação que nos afeta desde os anos 80 como para persistência do ethos oligárquico em nosso sistema político - mesmo após 20 anos da redemocratização.

Nossa já extensa caminhada nacional rumo ao moderno, que se arrasta desde o século XIX, com o fim da escravidão, adentra o XXI prenhe das ambigüidades de origem, sem que o neopopulismo-pragmático petista, o neoliberalismo-social tucano e o neoliberalismo-clientelista pefelista tivessem sido capazes de superar a velha estratégia conservadora da "transição segura" para a modernidade - historicamente plasmada no crescimento econômico sem desenvolvimento social do período 1930-79.

É motivo de júbilo que FH tenha transposto a linha das conveniências menores para atacar o envilecimento do PT, mas isto não é o suficiente para sairmos da crise: é preciso que este impulso se transforme num movimento mais amplo pelo desenvolvimento integral do país, e não apenas de seus setores mais "americanos", o que exige uma reaproximação com a sociedade - a mesma que o PT abandonou à sua sorte e que, outrora, o PMDB e o PSDB também o fizeram.

Seria necessário que FH rompesse com a lógica tradicional de fazer política e se reencontrasse com o FH da eleição senatorial de 1978 - uma campanha transgressora, que aglutinou artistas, sindicalistas, estudantes, religiosos, numa demonstração de vitalidade da sociedade civil de então. Este reencontro, naturalmente, deve se basear nos atuais desafios, na formulação coletiva de um programa capaz de nos colocar na rota do verdadeiro desenvolvimento, como se anseia desde 1984. Para tanto, é preciso extravasar as fronteiras partidárias e se aventurar na constituição de um bloco de forças, social e político, pluralista e orientado para viabilizar a transição da economia rentista que vivemos para a economia produtiva-inclusiva coerente com a equalização social almejada.

FHC poderia liderar esta virada que o país anseia e os "ingurgitados de tantos juros" repelem. Seria o passo que falta não só para completarmos nossa transição sem fim, como para afastarmos os retrocessos do horizonte: não redirecionar, com maturidade, nossa política econômica e não reformar nossas estruturas políticas, significa deixar o caminho aberto para as soluções "populistas" e perpetuar nossas ambigüidades sob novas roupagens - como, aliás, vem fazendo o sistema inaugurado em 1988.

A democracia é um sistema que vale a pena ser perseguido, mas desde Stuart Mill sabe-se que ela tem pressupostos que, em nosso caso, estamos dilapidando celeremente.

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Hamilton Garcia de Lima é sociólogo.



Fonte: O Globo, 28 fev. 2006.

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