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Os conservadores avançam

Hamilton Garcia de Lima - Setembro 2005
 

Lula encerrou o ciclo utópico da esquerda brasileira sem ter muita consciência disto. Sua eleição foi cercada de expectativas sobre a guinada que o país sofreria com sua histórica vitória. O quase colapso dos indicadores econômicos, em 2002, foi um reflexo destas expectativas sobre a frágil realidade da política econômica de FHC. Passados quase três anos, pode-se dizer que os sonhos foram enterrados, mas a vida continua célere em seu curso indomável.

A surpresa hoje se deve ao fato de que a moralização da política se descolou, em pouco tempo de governo, da iniciativa da esquerda para o campo do conservadorismo. Da noite para o dia o PT viu-se chafurdado na fossa comum das elites que combatia tão ferozmente, num cenário desconcertante para seus eleitores e militantes.

A razão histórica desta inusitada virada tem dois eixos, não relacionados na origem entre si: o atavismo das práticas quatrocentonas no interior do sindicalismo de Estado - ultimamente esmiuçadas por relatos de vários ex-dirigentes do PT que tentaram rebelar-se contra elas - e a falta de um projeto realista de governo, que fez Lula e Palocci optarem pela relativa continuidade da política econômica mesmo depois de afastada a crise da posse.

Na raiz da falta de projeto encontra-se um dos maiores equívocos do PT e, ainda agora, da "esquerda" petista: o de acreditar que os sonhos poderiam subjugar a realidade e transformá-la. Não podiam e o preço dessa quimera foi alto. O programa eleitoral petista de 2002 - anterior à carta eleitoral de Lula, de junho - era irrealizável não só naquela conjuntura como, a bem dizer, em qualquer contexto democrático normal. Isto por vários motivos, entre os quais destacaria a quantidade de frentes de luta que ele abria na ânsia de transformar a realidade, propiciando a formação de uma poderosa frente de interesses oligárquicos contrariados, e as expectativas de curto prazo que elas ensejavam.

Numa democracia as instituições estão naturalmente dispostas de modo a inibir as mudanças rápidas, abrangentes e profundas, por força mesmo de seus mecanismos de equilíbrio e controle (divisão de poderes). Assim, as intenções originais do PT significavam, na verdade - e a "estratégia democrático-popular" jamais o escondeu - a velha intenção da ruptura com o "pacto burguês de dominação", agora mediada pela preocupação com o não isolamento da vanguarda tal como sucedeu na luta armada dos anos 1960-70.

Foi só com o abalo do Kremlin que Dirceu se convenceu de que a era das revoluções havia passado e que sua evocação não passaria de mera manipulação ideológica do imaginário romântico, da esquerda e da juventude, em benefício de um projeto de poder compartilhado com Lula na intimidade de seus conciliábulos. O PT, nascido das lutas populares dos anos 1970, perdia seu ímpeto utópico sem conseguir construir em seu lugar uma energia reformista autêntica, entorpecido que estava pelo socialismo de seus intelectuais. Ao longo dos anos 1990, o ponto de equilíbrio entre a utopia socialista dos intelectuais e as pretensões reformistas do sindicalismo do ABC degeneraria celeremente em direção ao pragmatismo raso de agora.

Combinando a crítica à Constituição de 1988 - que não assinou - com a ocupação dos espaços democráticos que ela institucionalizara, o PT galgou os degraus do poder por meio das disputas eleitorais sem contrair maiores compromissos com a "legalidade burguesa". Deste modo, abandonava também o desafio de elaborar um programa para mudar o país no âmbito das instituições vigentes. O vazio deixado por esta estratégia acabaria precipitando o partido na crise a que agora assistimos.

A conseqüência mais vistosa do esgotamento do projeto petista, tal como era reconhecido até pouco tempo, é a súbita ampliação do horizonte conservador, recentemente sinalizado pela aproximação entre o PMDB e o PFL. Isto ocorre porque a crise do PT é inseparável da crise dos valores e dos discursos de esquerda, e não só no plano imediatamente político. Juntando-se a esta crise o avançado estágio de deterioração social das grandes metrópoles - que mistura democracia, sexo, drogas, baixa cultura e violência - temos a receita do bolo para o avanço do pensamento conservador e dos apelos populistas de direita, ambos centrados no resgate nostálgico da prosperidade econômica e dos costumes austeros.

As condições climatológicas para a formação da maré conservadora estão dadas, com o agravante de que o PT mostra-se incapaz de afastar os dirigentes responsáveis pela crise e, assim, legitimar-se para oferecer respostas aos quatro desafios urgentes do momento que poderiam aplacar a fúria da tormenta que se aproxima: abrir um amplo debate técnico sobre as alternativas ao atual modelo econômico que mantém o país amarrado a baixas taxas de desenvolvimento, enfrentar no plano imediato e mediato o desafio da reforma política para melhorar a qualidade da representação parlamentar, implementar uma agenda mínima de ação governamental com apoio das forças vivas do parlamento, e lutar pela punição dos parlamentares corruptos.

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Hamilton Garcia de Lima é sociólogo e cientista político.



Fonte: O Globo, 8 set. 2005.

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