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Graciliano Ramos, sem caixa dois

Luciano Oliveira - Setembro 2005
 

O que teria a ver Graciliano Ramos, o grande escritor, com figuras como Delúbio Soares, Marcos Valério e todos esses políticos que enlamearam um governo pela primeira vez de esquerda entre nós e que, todos críamos, seria pelo menos decente? Nada, justamente! A que vem então a menção do seu nome ao lado dessa gente? Já direi.

Todo mundo conhece o "velho Graça". Muita gente sabe que ele nasceu em Alagoas e que foi o autor de algumas obras-primas da nossa literatura. Muita gente também sabe que ele foi preso político durante o regime de Vargas, que foi comunista e rabugento. Há vasto anedotário sobre essa faceta de sua personalidade, como um diálogo que ele teria tido com José Lins do Rego a respeito do custo de vida. "Desse jeito, vamos acabar pedindo esmolas" – teria dito José Lins. "A quem?" – teria fulminado Graciliano. Mas há uma faceta menos conhecida do "velho Graça", sobre a qual gostaria de chamar a atenção do leitor.

Trata-se do Graciliano homem público, o qual, entre 1928 e 1936, quando foi preso, ocupou sucessivamente os cargos de prefeito da cidade de Palmeiras dos Índios, diretor da Imprensa Oficial e depois da Instrução Pública do estado de Alagoas. Deste último saiu diretamente para a prisão, com uma mão frente e outra atrás, de onde emergiu onze meses depois, sem um tostão e sem trabalho. Sem opções, aceitou a nomeação pelo ministro Gustavo Capanema para o modesto cargo de inspetor de estabelecimentos de ensino secundário do Distrito Federal. Para engordar os magros vencimentos, Aurélio Buarque de Holanda conseguiu empregá-lo no jornal Correio da Manhã como principal revisor. Basicamente disso Graciliano Ramos viveu até o fim dos seus dias.

Vida de homem simples e probo. De manhã, escrevia. À tarde, corria os colégios que devia inspecionar. À tardezinha, ia para a Livraria José Olympio, onde tinha cadeira cativa. À noite, ia para o Correio da Manhã onde, "engulhando", consertava "produtos alheios". Nessas ocasiões, costumava se despedir dos que ficavam com uma de suas impagáveis expressões que denunciavam, sob o verniz do homem culto, o sertanejo que no fundo nunca deixou de ser: "Vou bater sola". E ia para o trabalho duro até depois da meia-noite – ele que foi um dos raros escritores brasileiros a atingir o patamar da universalidade.

Caso raro – se não inédito – entre nós, Graciliano Ramos percorreu, enquanto funcionário público, uma brilhante carreira descendente! Catapultado da prefeitura de Palmeira dos Índios primeiro a um bom – diretor da Imprensa Oficial –, depois a um alto cargo – diretor da Instrução Pública – no seu estado natal, terminou a vida gastando sapato no Rio de Janeiro fiscalizando escolas secundárias. Como tal, Graciliano Ramos situa-se num terreno oposto àquele em que chafurda a média dos políticos brasileiros. Forçoso reconhecer, desde sempre... O argumento brandido pelos envolvidos nos atuais escândalos financeiros, o de que tais práticas sempre tiveram livre curso entre nós, não é de forma alguma aceitável, é verdade, mas também não é de forma alguma estapafúrdio.

De fato, práticas como patrimonialismo, "caixa 2", etc., não foram invenção dos atuais detentores do poder. E, é preciso igualmente reconhecer, sempre contaram com certa complacência da nossa mentalidade. Com efeito, provavelmente não há povo no mundo que se compraza, tanto quanto nós, em alardear como qualidades genuinamente nacionais traços confessadamente negativos, de que é exemplo o famoso "jeitinho" – o qual, é bom lembrar, significa literalmente dar "um jeito" na lei: isto é, violá-la, mesmo que de mansinho... É o lado "macunaímico" do ethos nacional, para me referir ao célebre personagem de Mário de Andrade, qualificado pelo próprio autor como "herói sem nenhum caráter".

Ou seja: a entranhada atitude de enaltecer usos e costumes prejudiciais à coisa pública não é algo circunscrito ao nosso senso comum. Alguns dos personagens mais ilustres do nosso "panteão", como é o caso de Macunaíma, incorporam traços desse jaez ao que haveria de mais representativo do nosso modo de ser. O patrimonialismo desses políticos e aderentes depondo em Brasília, por exemplo, está presente no "herói da nossa gente". Exemplifico com um trecho extraído do capítulo onde Macunaíma e seus irmãos imaginam meios de irem à Europa atrás do "gigante Piaimã" que para lá fugira depois de levar uma surra do nosso herói. Vale a pena transcrever um pequeno extrato da conversa, conservando a particular grafia do original (atenção, senhor revisor: não "conserte" Mário de Andrade!):

– Macunaíma finge de pianista, arranja uma pensão do governo e vai sòzinho.

– Mas praquê tanta complicação si a gente possui dinheiro à bessa e os manos podem me ajudar na Europa!

– Você tem cada uma que parece duas! Poder a gente pode sim porém mano seguindo com arame do Govêrno não é milhor? É. Pois então!

Tudo está aí. Os irmãos de Macunaíma, mesmo dispondo de recursos, repetem a voracidade com que a "nossa gente" costuma se dirigir aos cofres públicos em busca de favores: afinal, "com arame do Govêrno não é milhor?" Ora, Graciliano Ramos teve, por mais de uma vez, "arame do Govêrno" sob sua guarda. Mas, em vez de enriquecer, como sói acontecer, empobreceu! Trajetória provavelmente inédita na nossa república, que merece ser destacada.

Quando Graciliano Ramos conseguiu publicar seu primeiro romance, Caetés, em 1933, seu nome já era conhecido em certas rodas políticas e literárias graças a uns Relatórios que enviara ao governador do estado dando conta de sua gestão à frente da prefeitura de Palmeira dos Índios. Compreende-se a súbita notoriedade. Ainda hoje a leitura desses documentos constitui um deleite, tanto pelo que é dito quanto pela forma como as coisas são ditas. No primeiro deles, Graciliano, decepcionado com seus concidadãos, observa que eles não compreendem "que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal". E diz mais:

Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com Prefeitos coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. (...) Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas.

No segundo relatório há, entre outras, essa preciosidade:

A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá.

Pelo estilo, parece algo saído da pena de um humorista contemporâneo. Custa crer que se trata de trecho de um relatório oficial de um prefeito do interior do Brasil escrevendo ao governador do seu estado antes da revolução de 30. Mais tarde, como diretor da Instrução Pública, Graciliano elaborou um plano para melhoria do ensino primário que incluía medidas como a exigência de diploma para as professoras e a realização de concurso para o preenchimento dos cargos. E, como conseqüência dessas medidas, a demissão das professoras primárias interinas, a maioria sem habilitação para o ofício e geralmente contratadas por indicação de padrinhos políticos. Pois bem: como parte das medidas em curso, Graciliano assinou ato exonerando 66 professoras, entre as quais sua própria irmã, Marilí Ramos, então lecionando num povoado perto de Palmeira dos Índios.

Custa crer que existiu no Brasil um homem público como o "velho Graça". Prefeito, despediu funcionários que nada faziam; diretor da Instrução Pública, contrariou políticos e praticou um ato de antinepotismo inimaginável, ao despedir a própria irmã junto com um lote de professoras inabilitadas para a função; inspetor de ensino, não faltou a um dia de trabalho, mesmo sendo amigo do ministro que o nomeara. Com isso, creio se tornar evidente o motivo para lembrar Graciliano Ramos neste momento. Ou seja: mesmo nada tendo a ver com essa caterva encalacrada em Brasília, o "velho Graça" – como uma espécie de negativo luminoso – tem tudo a ver com esses tempos mais vulgares do que propriamente sombrios que estamos todos vivendo.

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Luciano Oliveira é professor de pós-graduação em Ciência Política e Direito da UFPE e autor, entre outros, de Sua Excelência o Comissário e outros ensaios de Sociologia Jurídica (Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004).



Fonte: Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco

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