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Lukács, Proust e Kafka

Michael Löwy - Novembro 2005
 

Carlos Nelson Coutinho. Lukács, Proust e Kafka. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 254p.

Há muitos anos atrás, quando conheci Carlos Nelson Coutinho e seu amigo Leandro Konder, eles me confessaram que haviam composto um samba em homenagem a Georg Lukács, celebrando seu glorioso combate contra o positivismo de Augusto Comte. Este livro é uma continuação daquele samba com outros meios: a letra é diferente, mas a música - a dialética - se ouve perfeitamente, nas linhas e nas entrelinhas.

Carlos Nelson Coutinho é não só um dos mais importantes pensadores politicos do Brasil, mas também o inspirador de uma espécie de escola gramsciana brasileira. Não é por acaso que há muitos anos ele se interessa pela literatura: como bom marxista, sabe que as grandes obras literárias nos ensinam mais sobre a sociedade em que vivemos do que uma tonelada de manuais de economia ou de sociologia (estou parafraseando uma afirmação de Friedrich Engels). É o caso, certamente, destes dois «monstros sagrados» da literatura moderna, Franz Kafka e Marcel Proust.

Nobody is perfect: apesar de suas excepcionais qualidades como filósofo e historiador da literatura, Lukács nunca conseguiu entender Kafka - salvo, de forma episódica, em alguns parágrafos de seus últimos escritos, reunidos num apêndice deste livro. Sua crítica ao autor de O processo no livro Realismo crítico hoje (escrito em 1957) é pobre, estreita, numa palavra: stalinista. Dando a volta por cima, Carlos Nelson utilizou o método lukacsiano contra Lukács e desenvolveu uma brilhante análise da obra do escritor de Praga como crítico da reificação moderna. Aliás, este foi um dos temas centrais da correspondência entre CNC e Lukács nos anos 1960, aqui publicada. Seja dito entre parênteses, tenho muita inveja de CNC por esta correspondência: nunca recebi uma carta do velho filósofo húngaro, embora uma vez tenha inventado - com a cumplicidade de meu amigo Roberto Schwarz - e feito circular entre colegas da USP uma falsa missiva que o autor de Geschichte und Klassenbewusstsein me teria enviado.

Inspirando-se no método lukacsiano, CNC analisa Proust - que Lukács praticamente ignorou, salvo numa entrevista a Stephen Spender já no fim de sua vida - e Kafka à luz de uma poética do realismo, revelando como o conteúdo sócio-histórico, que serve de pressuposto às formas estéticas dos dois autores, é reposto artisticamente na estrutura de seus relatos. Bela demonstração de dialética materialista!

Pessoalmente, utilizei bastante o ensaio de Carlos Nelson sobre Kafka, em sua versão dos anos 1970, em minhas próprias pesquisas sobre o escritor de Praga. É verdade que discordo de sua caracterização do método de Lukács ao tratar de Kafka, em 1957, como próximo ao de Lucien Goldmann (a relação entre obra de arte e visão do mundo). Tenho também algumas divergências sobre a questão do realismo em Kafka (tardiamente reconhecido por Lukács), embora a fórmula de CNC - «o fantástico está a serviço do realismo» - me pareça bem interessante. Mas esta é uma discussão que não cabe no estreito espaço de uma «orelha».

Carlos Nelson Coutinho fez muito bem em retirar estes ensaios de sua gaveta (o curriculum mortis, segundo a irônica expressão de Leandro Konder), atualizá-los e publicá-los: são um belo exemplo da luz que pode produzir, quando adequadamente manejado, o instrumento materialista-histórico.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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