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O regime de 1964 não era um monolito

Lúcio Flávio Pinto - Janeiro 2006
 

Uma carta que o então ministro do Trabalho e Previdência Social, Jarbas Passarinho, escreveu para o ministro da Justiça, Luis Antônio da Gama e Silva, até agora inédita e que o Jornal Pessoal, publicação alternativa de Belém do Pará, revela em sua última edição, ajuda a compreender melhor o Brasil de quase 40 anos atrás. A carta é de março de 1969, três meses depois do AI-5, o golpe dentro do golpe militar de 1964. Nela, a data não está assinalada, mas o jornalista Lúcio Flávio Pinto, que a divulgou em seu quinzenário, dispõe de informações que lhe permitem prever que ela é do dia 13 de março, exatamente três meses após a edição do terrível Ato Institucional n. 5, do qual Passarinho e Gama e Silva foram subscritores.

A carta do ex-governador do Pará é um documento precioso de época. Passarinho, que também foi governador do Pará e senador, incorporava então a figura do anfíbio, o militar que atuava na vida pública a partir dos quartéis e que, com a assunção do poder total, se tornou político profissional, a serviço do movimento (ou Revolução, como preferiam) vitorioso. Passarinho é um dos principais espécimes desses anfíbios, entre os quais também se destacaram os coronéis Mário Andreazza (ministro dos Transportes e da Educação) e Ney Braga (ministro da Educação e governador do Paraná).

Já políticos profissionais, esses oficiais se viam divididos entre a lealdade a seus companheiros de farda e os compromissos com os correligionários, intermediários e gestores da base eleitoral. De um lado, os militares profissionais, sobretudo os da "linha dura", querendo prosseguir e ampliar a depuração do ancien régime, os "carcomidos", como eram denominados por outra revolução, a de 1930. Mas a manutenção da razzia levaria à extinção dos quadros políticos - e, por extensão, dos "jovens turcos" já estabelecidos no poder político.

Passarinho faz malabarismos para se posicionar nesse jogo de pressões, que sua carta revela ser bem maior do que os pesquisadores geralmente estão dispostos a admitir, ao considerar o regime militar estabelecido em 1964, através do golpe que depôs o presidente constitucional João Goulart, como um "sistema" fechado e monolítico. Havia muitas fissuras e disputas internas entre as várias camadas de poder em acomodação. A faixa de Passarinho, apesar de destacada, era inferior à de Gama e Silva, extraído do meio jurídico de São Paulo (o que lhe autorizava o tratamento de "professor") para gestar e referendar atos de violência envernizados de juridicidade, como o AI-5, para o qual fazia questão de destacar sua contribuição (já Passarinho precisou se desfazer dos "escrúpulos da consciência" para assinar o nefando papel).

Passarinho desenvolve a carta sobre uma lâmina muito fina. Precisa reagir e demonstrar sua indignação com a decretação do recesso da Assembléia Legislativa do seu Estado, sem seu conhecimento, mas sem aprofundar a crítica, a ponto de desagradar o Torquemada de plantão no cargo de inquisidor-mor. Com estilo, faz malabarismos sobre esse fio afiado, procurando salvar o que restou de mundo político depois da devastação do AI-5.

Os mais velhos apreciarão com mais gosto esse documento inédito, mas todos tirarão proveito dele, a 37 anos da edição de um dos documentos mais tristes da história brasileira. Para os mais curiosos, o jornalista informou que a carta não lhe foi dada pelo seu autor. "Quando lê-la no Jornal Pessoal - e, agora, em Gramsci e o Brasil -, Jarbas Gonçalves Passarinho ficará mais surpreendido do que qualquer outro leitor", observou o editor do alternativo, que já tem mais de 18 anos de existência. Domiciliado em Brasília há muito tempo, Passarinho está hoje com 86 anos, há mais de 10 anos afastado da militância política. Perdeu sua última eleição, a de 1994, para o médico Almir Gabriel, que se elegeu governador do Pará pelo PSDB.

A íntegra da carta:

Meu caro Gama

Não estranhe esta carta. Ela é ditada pelo afeto que lhe tenho. Por isso mesmo não está vazada em termos cuidadosos, mas em linguagem fraterna e sincera.

Quero dizer-lhe quanto me magoou não ter Você me dispensado a honra de conversar comigo sobre o recesso da Assembléia Legislativa do Pará.

Implantei a Revolução no Pará, como Você sabe. Redimi o Estado dos erros dos seus homens públicos. Restaurei a dignidade do Executivo, limpei o Judiciário de seus cancros mais notórios.

Governei apoiado em precária maioria de 20 contra 17 deputados, que permaneciam leais aos depostos.

Ora, foi essa Assembléia que, após as eleições de 1966, nós renovamos em boa proporção e, marcando notável vitória nas urnas, constituímos com 33 deputados da Arena, contra 8 do MDB!

Eis aí, meu caro Gama, uma afirmação da popularidade e da força da Revolução no Pará.

O Governador Alacid não teria qualquer problema no legislativo, onde a massa de manobra do partido é esmagadora. Seu líder e seu vice-líder são os mesmos que serviram em meu curto Governo.

São esses deputados, é essa Assembléia que o Governo acaba de fechar, como medida moralizadora. Medida que, atente Você, me atinge por via indireta. Sim: havíamos implantado uma conduta revolucionária louvada em todo o Brasil. De Você mesmo já ouvi essa referência, mais de uma vez. Pois tudo isto vai por águas abaixo, menos de dois anos depois de eleitos os novos deputados.

Eu, estando em Belém, depois que, com o Governador Alacid Nunes estive em seu Gabinete e assisti ao Governador dar-lhe todas as explicações sobre a Assembléia, fui procurado pelos deputados. Disse-lhes que acreditava na reabertura natural dos trabalhos, a 15 de março. Isto porque nada percebi de Você, no sentido de sancionar a Assembléia, depois das explicações dadas.

Ainda mais: na véspera do ato que a pôs em recesso, discuti por telefone, com Você, a constituição da mesa da Assembléia, para 1969. Você ainda me aconselhou a evitar a recondução do sogro do Alacid [deputado Abel Figueiredo, pai de dona Marilda] para a Presidência.

Instruí os companheiros do Pará neste sentido, através do deputado Gerson Peres, que veio ao Rio só para isso.

No outro dia, horas depois portanto, era assinado o ato que punha em recesso a Assembléia!

Ora, vejamos as razões que Você alinhou para a punição da A. Legislativa do Pará, que assim reentra nas manchetes dos escândalos, donde eu o tirei, a partir de Jun/64.

1º Subsídios – Parte fixa NCr$ 1.500,00 –

É verdade que a parte fixa é superior à federal, mas a Constituição não manda guardar proporcionalidade de todas as parcelas do subsídio.

No todo, os deputados paraenses não percebiam mais de 2/3 do que percebem os congressistas, pois se o fixo era maior (NCr$ 1.500,00 contra NCr$ 1.200,00), o variável era ¼ (NCr$ 15,00 contra NCr$ 60,00).

Assim, o total (fixo + variável) dava aproximadamente NCr$ 2.000,00 / mês, o que está no limite dos 2/3 dos congressistas.

2º Sessões Extraordinárias –

O ato diz que foram realizadas 98 sessões; certo, mas em que prazo?

Enquanto outros faziam 20 sessões num só dia, os paraenses faziam média menor de 10 sessões extraordinárias por mês!

Isto lhes dava uma média de NCr$ 150,00/mês, o que prova que não havia "indústria" de sessões extraordinárias.

3º Verba de "representação" –

Votada, como aumento dos subsídios, em Nov/68, e não após o AI-7 [Ato Institucional número 7].

Errada uma coisa como a outra, mas resultante de entendimentos dos deputados com o Governo estadual, em face de informação escrita da Câmara dos Deputados, que dizia existir verba equivalente para os congressistas, no valor superior a NCr$ 1.000,00/mês.

Na hora em que se põe essa Assembléia sob castigo, castiga-se o Governador, que é revolucionário e surgiu em nome da Revolução no processo político, onde se conduz com acerto.

Atinge-se a mim, que sou Presidente da Arena do Pará e Ministro do Governo.

Creia, meu caro Gama, que não me atreveria a alinhar estes comentários, se não os achasse justos e não fossem dirigidos a quem, como Você, me dispensa tratamento fraternal.

Corre, em Belém, que o recesso da A. Legislativa foi conseqüência de pressão do Gen. Rodrigo Octávio. Nada sei. Não creio, porém, que ele possa - e eu não deva! - ser ouvido em tal caso. Por mais que nos mereça o Gen. Rodrigo Octávio - e muito merece pelo seu caráter e valor - não posso deixar de lembrar que muito honrei o meu Exército na minha vida pública, limpa e digna.

Estou certo de que Você não me praticaria essa injustiça.

Eis aí, meu caro Gama e Silva, o meu "desabafo". Fico tranqüilo quanto ao seu entendimento e o abraço cordialmente.

JARBAS G. PASSARINHO



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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