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A nova pedagogia da hegemonia

Georgia Sobreira dos Santos Cêa - Fevereiro 2006
 

NEVES, Lúcia Maria Wanderley (Org.). A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005. 311p.

Os autores deste A nova pedagogia da hegemonia conseguem, com clareza, consistência teórico-metodológica e rigor científico, realizar o que pretendem. De fato, conforme anunciam na introdução da obra (p. 39), os autores identificam e desvelam o processo de redefinição dos fundamentos e das práticas do Estado brasileiro no sentido da consolidação e do aprofundamento do projeto burguês para a atualidade. E o fazem evidenciando o pensamento e algumas importantes práticas pedagógicas constitutivas da mais atual corrente da pedagogia da hegemonia representada pela Terceira Via, num processo em que o Estado ampliado se requalifica historicamente como agente educador.

Mas, para além desse mérito acadêmico, o livro tem um efeito mobilizador, uma vez que o leitor acaba sendo levado a localizar-se nas tramas e nos dramas que envolvem a educação para o consenso liderada pelas forças econômico-políticas do capital: ou perde-se a ingenuidade teórico-analítica, ou esvai-se o eufemismo barato dos adeptos da nova pedagogia da hegemonia, ou encoraja-se para a ação coletiva contra-hegemônica. Ao término da leitura, ainda, alguns menos reflexivos poderão cobrar a falta de uma apresentação formal de considerações sintetizadoras e/ou conclusivas do livro; elas são absolutamente dispensáveis diante da organicidade e coerência da obra e parece que, de propósito, os autores abriram mão dessa prerrogativa. Ainda assim o livro continua sendo uma instigante provocação.

Para os que acompanham a trajetória teórico-prática do Coletivo de Estudos de Política Educacional [1], a leitura de A nova pedagogia da hegemonia evidencia que essa é a mais gramsciana de suas produções. As contribuições do pensador italiano, assumidamente o principal referencial teórico adotado para o exercício crítico que operam (p. 15), são apropriadas de forma segura, competente, original e responsável pelos autores A. de Melo, Algebaile, Falleiros, Lima, M. de Melo, Martins, Santa'Anna, Tomaz e Neves. Esta última, mais que organizadora do livro, explicita, novamente, a raríssima capacidade de produzir conhecimento de forma coletiva e solidária. Embora abordem distintas dimensões do estudo dividindo didaticamente os temas analisados, esses autores conseguem fazê-lo de forma orgânica, coerente e articulada: ao longo de todo o livro ganha vida o debate – ora mais explicitamente, ora mais sutilmente – entre a essência conservadora do capitalismo e a necessidade de superação dessa forma de organização social fundada na exploração, expropriação e dominação de uns homens sobre outros. O referencial gramsciano, mais que um anúncio, é o que dá movimento às análises expostas no livro. É a partir e por meio desse referencial, principalmente, que os autores tornam inteligíveis as múltiplas intenções e ações resultantes do movimento do capitalismo em curso, no sentido de manter a dominação do capital sobre o trabalho, tendo o Estado ampliado como eficiente sujeito histórico (con)formador: eis o sentido último da nova pedagogia da hegemonia.

O livro apresenta, numa esclarecedora introdução, o movimento em curso da recomposição do bloco histórico capitalista na busca pela manutenção e fortalecimento de sua hegemonia. Os autores apropriam-se e sustentam a tese de que estamos a viver, no Brasil, um processo de ocidentalização, a partir do aprimoramento da politização da sociedade civil, de modo que depuradas formas de combinação entre o consenso e a coerção vêm proporcionando às classes dominantes tornarem-se, também, dirigentes.

A apresentação das condições de recomposição do bloco histórico capitalista e de sua expressão no Brasil é feita a partir de um invejável domínio teórico-conceitual da noção gramsciana de Estado ampliado: menos que uma definição, o Estado ampliado pulsa como uma categoria analítica e metodológica, no sentido exato requerido pelo materialismo histórico. Assim, é possível compreender que, apesar das críticas lançadas pelo governo Lula da Silva aos seus antecessores (em especial o governo FCH), há entre eles elos estruturais de continuidade. Isso porque o livro nos mostra que o remédio amargo do neoliberalismo receitado por Hayek e a crença na possibilidade de um mundo em tons róseos postulada pela Terceira Via defendida nas obras de Giddens são momentos de um mesmo processo. A renovação do projeto de sociabilidade burguesa exigida pela crise estrutural agravada a partir dos anos 70 está ainda em curso. Assim, a tentativa da Terceira Via de apresentar-se como a superação dialética tanto do projeto liberal como do projeto socialista está historicamente impedida; ela representa, de fato, uma densa ideologia burguesa, mas que nem por isso se torna insofismável.

A introdução de A nova pedagogia da hegemonia lança luz sobre os demais capítulos do livro, nos quais são expostas mediações teóricas que trazem à tona determinações essenciais da nova pedagogia da hegemonia.

Numa primeira parte, a Terceira Via é apresentada e identificada como a mais significativa síntese do capitalismo atual, movida e orientada para conferir legitimidade e dar sustentação às "estratégias burguesas para obtenção do consenso em nível mundial" (p. 66). Essa síntese, constitutiva do novo bloco histórico moldado a partir da hipertrofia da especulação financeira no processo de reprodução ampliada do capital, tem as agências e os organismos internacionais como seus principais tutores. Para esses sujeitos políticos coletivos, a perda de espaço do capital produtivo naquele processo de reprodução é interpretada como um anúncio definitivo do fim das relações contraditórias entre capital e trabalho. Assim, a ocorrência de desigualdades passa a ser justificada pelo crescimento da importância, no novo projeto de sociabilidade burguesa, de aspectos subjetivos, valorativos, como bem exemplificam as noções ideológicas de capital social, empreendedorismo, responsabilidade social, etc., que atomizam e despolitizam as relações sociais e se traduzem na simplista chave interpretativa segundo a qual, "se na população está a causa dos problemas, na população também poderiam estar suas soluções" (p. 80).

Esse deslocamento ideológico do neoliberalismo da Terceira Via (da totalidade social para as particularidades) tem uma significativa força operativa, analisada e discutida pelos autores a partir da compreensão que a repolitização das relações de produção "está se consolidando também por meio das redefinições da relação entre sociedade política e sociedade civil" (p. 89). Nesse movimento, ganha força a clássica interpretação liberal de que a sociedade civil é o espaço do mercado, das relações de interesse entre sujeitos individuais, enquanto o Estado, no seu sentido estrito, reserva espaço à política, à administração comum dos diferentes interesses, à garantia das propriedades. Para amenizar as possíveis e naturais tensões entre a busca do lucro típica da sociedade civil e o necessário caráter autoritário do Estado, o terceiro setor é aclamado como o espaço próprio do interesse público, das necessidades sociais, da conciliação e do encontro. O neoliberalismo da Terceira Via desconsidera que esse suposto "espaço público" pode ser exatamente "o local da legitimação, da propagação dos ideais, valores e concepções do bloco no poder" (p. 183). Na segunda parte do livro os autores mostram como esse processo vem se efetivando no Brasil, a partir da reforma gerencial do Estado brasileiro iniciada nos anos 90 e a partir de significativas "metamorfoses" experimentadas pelos aparelhos privados de hegemonia, no âmbito da sociedade civil. Nessa parte merecem destaque, ainda: a elucidação do caráter ideológico da noção de "responsabilidade social empresarial" divulgada por antigas e recentes entidades patronais, do Senai ao Instituto Ethos, respectivamente (p. 151) e o mapeamento dos mecanismos regulatórios decorrentes da reforma gerencial do Estado brasileiro, resultantes da hegemonia exercida pelo projeto burguês em curso e que têm resultado, na prática, na legitimação da transferência de recursos públicos para o setor privado e na precarização das condições de trabalho dos "colaboradores" do terceiro setor (p. 192-206).

Na terceira e última parte do livro são apresentadas algumas experiências concretas em curso no Brasil que mostram as diferentes estratégias do capital constitutivas da nova pedagogia da hegemonia. Aqui os autores evidenciam as marcas do neoliberalismo da Terceira Via presentes em diferentes ações: elucidam o sentido histórico dos apelos à mudança curricular contidos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (p. 209-235); mostram os riscos do exercício da "responsabilidade social empresarial" aplicada ao ensino público, especialmente em função da transferência para esse espaço de valores e de práticas privadas (p. 238-254); evidenciam a habilidade política da Igreja Católica para garantir, ao mesmo tempo, seu espaço como representante do consenso neoliberal renovado pela Terceira Via e permanecer se apresentando como uma instituição a favor dos "excluídos" (p. 255-270); explicitam, por fim, que hábeis estratégias de desobrigação do Estado com o financiamento e a execução das políticas sociais e de legitimação e legalização da transferência de recursos e de papéis do Estado estrito senso para a sociedade civil vêm sendo implementadas em diversos setores, incluindo aqueles outrora reivindicados pelas classes populares, como é o caso das políticas de lazer.

A leitura de A nova pedagogia da hegemonia nos faz lembrar, além dos estudos políticos de Gramsci, uma das reflexões expostas por esse pensador italiano nos escritos sobre ciência e método contidos no Caderno 11: os autores do livro em questão conseguem distanciar-se do senso comum que prevalece em muitas críticas lançadas contra o neoliberalismo exatamente porque buscam entender os fundamentos e as razões do principal adversário histórico dos sujeitos políticos coletivos propositores da sociedade socialista, sem partirem do pressuposto de que a Terceira Via se justifica de forma simplista, fácil, superficial ou medíocre. Ao contrário, enfrentando o adversário teórico mais forte, os autores permitem compreender que o caráter sedutor e fantasmagórico da ideologia burguesa renovada tem origem no justo entendimento dessa classe de que a agudização da condição de barbárie social se manifesta na razão direta de potenciais espaços e práticas contra-hegemônicos. É isso, em última instância, que o neoliberalismo da Terceira Via quer evitar.

Em A nova pedagogia da hegemonia não são encontradas propostas de como elaborar teorias e ações contra-hegemônicas. Essa, talvez, possa ser uma (luxuosa e excêntrica) cobrança a ser feita ao livro. Mas os autores do livro fazem o principal: elucidam as condições históricas que têm promovido tanto o avanço da consciência política da classe capitalista para o nível ético-político, fortalecendo seu projeto hegemônico, como o retrocesso da classe trabalhadora para um nível de consciência política econômico-corporativa. Mais ainda, os autores de A nova pedagogia da hegemonia desnaturalizam, com êxito, a idéia – difundida inclusive por muitos (supostos) aparelhos contra-hegemônicos – de que há conciliação possível entre exploração material e emancipação humana.

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Georgia Sobreira dos Santos Cêa é doutora em Educação, professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho, Estado, Sociedade e Educação (GP-TESE).

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[1] O Coletivo de Estudos de Política Educacional está institucionalmente vinculado à Universidade Federal Fluminense (UFF) e à Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz. Sob a coordenação de Lúcia Maria Wanderley Neves, o Coletivo já publicou as seguintes obras: Política educacional nos anos 90: determinantes e propostas (Ed. da UFPE, 1995); Educação e política no limiar do século XXI (Autores Associados, 2000); O empresariamento da educação: novos contornos do ensino superior no Brasil dos anos 90 (Xamã, 2002); Reforma universitária do governo Lula: reflexões para o debate (Xamã, 2004).



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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