Estamos em plena estação JK. Graças à minissérie que a TV Globo vem exibindo sobre a vida do presidente Juscelino Kubitschek e ao belo documentário de Miguel Faria Jr. sobre Vinicius de Moraes, os fascinantes anos dourados têm sido evocados a todo instante, trazendo de volta a lembrança encantadora de que, um dia, tivemos uma tremenda fé em nós mesmos, como nação.
Pedro Nava costumava dizer que a experiência é como um farol virado para trás: inútil, porque o futuro é diferente do passado e, portanto, imprevisÃvel. Talvez o saudoso mestre não discordasse, entretanto, da seguinte formulação: o passado ensina, sim, desde que saibamos extrair as lições e adaptá-las à s circunstâncias cambiantes da história.
Eis um exemplo que me parece oportuno e útil. Consideremos por um momento o ensinamento que a experiência do velho partidão - o PCB, hoje PPS - legou para as novas gerações, em particular para os que se identificam com o campo das esquerdas. Hoje, avaliando retrospectivamente o universo polÃtico, a opinião pública tende a associar o comunismo com o regime soviético e todo um vasto repertório de doutrinas ultrapassadas, sectárias e dogmáticas, que acabaram gestando totalitarismos, ao longo do século XX. Comunismo virou sinônimo de caretice estética, ditadura polÃtica, estreiteza mental, aversão à s minorias, moralismo carola combinado com maquiavelismo aético, e insensibilidade para as complexidades contemporâneas. Com essa generalização perde-se de vista a contribuição decisiva que os comunistas brasileiros deram à construção da democracia.
No Brasil, onde jamais estiveram no poder, os comunistas, em meio a muitas disputas internas, conceberam e colocaram em marcha uma novidade extraordinária, na segunda metade dos anos 1950, depois de uma longa noite clandestina, que se seguiu ao brilho promissor mas fugaz a que se resumiu o êxito eleitoral de 1945. Essa novidade veio sob a forma dupla de conceito e prática. O conceito: a democracia e o pluralismo que lhe é inerente deveriam ser considerados objetivos estratégicos, não apenas táticos, isto é, não apenas instrumentais e oportunistas. A prática: a valorização da democracia e da liberdade exigia um novo comportamento polÃtico, menos arrogante e mais sofisticado.
Ao escolher o pluralismo, o PCB renunciou aos dogmatismos, a despeito das resistências de tantos militantes e lÃderes formados na mentalidade autoritária. Quando se postula a superioridade do pluralismo, compreende-se que ninguém ou nenhum partido é dono da verdade ou senhor exclusivo da pureza. Quando se adota a democracia como via e meta, defende-se um arranjo institucional em cujos termos cada convicção terá oportunidade para testar-se, de acordo com a decisão da maioria, respeitados os direitos das minorias. Na democracia, o experimentalismo e seus resultados objetivos - não os princÃpios, a ideologia, a retórica ou os valores - proporcionam a seleção de caminhos e opções, ao longo do processo sinuoso de acertos e erros.
Já sob a ditadura, nos anos 1960 e 70, essa herança firmou-se, levando o PCB a colocar em prática uma generosa polÃtica de alianças amplas, que construiu a unidade das forças democráticas, na contramão do sectarismo. O método que orientava as decisões respondia à pergunta: qual o espectro mais amplo de forças que se pode articular, tendo-se em vista que a finalidade é a construção da democracia no Brasil, apenas em cujos marcos a sociedade identificará as vias mais adequadas à promoção dos avanços possÃveis, em cada momento, em direção à s metas que ela própria saberá formular? O método envolve o sacrifÃcio de ambições corporativas ou partidárias, em benefÃcio do espÃrito público e republicano. Ou seja, nada de aparelhamento do Estado ou golpismos hegemonistas; e jamais se deveria preferir uma candidatura que pusesse em risco a unidade mais ampla possÃvel, esteio do avanço mais consistente, em cada conjuntura.
Mas é claro que não faltaram lutas e ranger de dentes, entre os comunistas do partidão. As visões atrasadas não recuaram facilmente. A trajetória do PCB-PPS não foi nenhuma história da carochinha, feita de glória e triunfos. Mas a linha que se afirmou acabou sendo aquela que, hoje, pode inspirar os que - nos mais diferentes partidos ou fora deles - desejam manter vivos os valores socialistas e democráticos da liberdade e da justiça. A triste história recente do PT - partido que, apesar dos pesares, ainda abriga tanta gente honrada - mostra a que resultados pode levar a arrogância purista e sectária. Tendo recusado por duas décadas a polÃtica de unidade, vitoriosa na transição democrática, o PT rendeu-se à s alianças apenas quando elas se tornaram um imperativo para vencer eleições e governar o paÃs. Por isso, adotou-as a partir da equivocada perspectiva do hegemonismo, segundo o qual parceiros polÃticos reduzem-se a instrumentos descartáveis e momentâneos. O futuro do Brasil é tarefa de todas as forças polÃticas que compartilhem um programa democrático, sem exclusões. Nosso grande desafio histórico continua sendo a unidade em torno do aprofundamento da democracia.
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Luiz Eduardo Soares é cientista polÃtico e professor da Universidade Cândido Mendes (Rio).