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O presidente e os meninos do tráfico

Maria Alice Rezende de Carvalho - Abril 2006
 

O Presidente Lula encontrou-se com o rapper MVBill, a pretexto de receber uma cópia do livro e do filme Falcão, os meninos do tráfico, exibido nacionalmente domingo, 19 de março, no programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão. E declarou ao seu interlocutor que ele próprio – Presidente – poderia ter-se tornado um daqueles meninos não fossem os cuidados e a energia de sua mãe.

Portanto, o Presidente do Brasil, eleito pelo maior partido de esquerda do país, situa na esfera privada as causas da dificuldade que o sistema da ordem vem encontrando para seu assentamento na periferia das grandes cidades. Levando ao paroxismo o comentário presidencial, se poderia concluir que a moderna ordem burguesa brasileira tem como principal antagonista as mães, pois, assim como o desemprego, para os liberais, é fruto do despreparo do trabalhador, o crime será efeito da incompetência das mães para aquietar seus filhos, acocorá-los diante da miséria, agachá-los perante o mundo.

Esse é o diagnóstico analítico do Presidente, extraído do maior partido de esquerda do país. E o que impressiona é que, nele, a capitulação ao liberalismo não se traduz na defesa das diretrizes macroeconômicas adotadas, conforme apontam seus críticos, mas na introjeção de pressupostos individualistas e privatistas que organizam o entendimento presidencial do mundo.

Ao elogiar o desempenho de sua mãe, Lula certamente se esqueceu do Brasil em que viveu sua juventude. Um Brasil que ainda conhecia a vitalidade de um setor industrial em expansão, que pressionava positivamente o mercado formal de trabalho e, inclusive, o sistema educacional de preparação técnica e profissionalizante de milhares de jovens pobres; estes, como Lula, eram estimulados a estudar no chão de fábrica, vendo no trabalho uma via de progresso material e de dignificação da sua existência.

Lula esqueceu, principalmente, que, naquele Brasil, as organizações sindicais eram escolas de civismo, em que a reivindicação por melhores condições de trabalho se traduzia em luta permanente pela ampliação democrática da república. Foi dentro do movimento operário organizado, dentro da estrutura sindical, que Lula se formou como um intelectual popular, certamente capaz de produzir sobre o país um diagnóstico político melhor do que o que faz hoje.

E pouco importa que sua aparição no mundo público, já no contexto das greves operárias do ABC, em pleno regime militar, tenha sido marcada pela recusa àquele sindicalismo que o formara e pela adoção de uma outra matriz de afirmação do mundo do trabalho: o chamado "sindicalismo de resultados". Porque sua história juvenil e sua socialização política se deram no interior do movimento operário organizado segundo outra tradição, que tinha como bandeira o alargamento da democracia brasileira. Lula se esqueceu de um Brasil bem mais enérgico e encantado que lhe ofereceu as chances de não se tornar um falcão.

Mas, é claro, o mundo mudou. E o presidente, que sai das fileiras do maior partido de esquerda do país, poderia aproveitar a circunstância desse filme para apontar os conflitos que, em toda parte, opõem as grandes maiorias aos efeitos deletérios derivados do sistema econômico de vigência mundial. A propósito, o jornal O Globo, na mesma página em que estampou o encontro presidencial com o MVBill, também noticiou o levante estudantil contra as alterações da legislação trabalhista na França.

Nenhum traço de cosmopolitismo na análise do presidente Lula. Nenhuma reflexão, na melhor tradição da esquerda, sobre os impasses que a modernidade e seus pressupostos vêm apresentando nesse começo de milênio. O mínimo que se pode dizer é que o presidente perdeu uma ótima oportunidade, não de resolver o problema da violência, mas de arrumar o debate político sobre o definhamento de uma certa perspectiva de incorporação social, que o sistema financeiro internacional vem enterrando.

Talvez não se devesse esperar de qualquer Presidente da República a arrumação do debate público, a animação das relações entre a opinião e a vida institucional que, no presidencialismo brasileiro, se confunde inapelavelmente com a figura do chefe do Executivo. Mas de um Presidente como Lula, sim. Lula foi eleito com base em uma ampla confluência das expectativas sociais por mudança e sob uma correlação de forças nacionais e internacionais muito favorável. Sua trajetória, sua experiência como organizador do movimento de massas, sua forma direta de comunicação são atributos de uma liderança crítica, capaz de educar politicamente a sociedade, de esclarecer trabalhadores e grandes maiorias quanto à sua posição no mundo e eventuais saídas para uma afirmação conseqüente da vida.

Mas o Presidente Lula, eleito pelo maior partido de esquerda do Brasil, abdicou de liderar um grande movimento de incorporação política e de engajamento social nos debates realmente relevantes à democracia no país. E assim caminhamos para uma eleição em que as instituições políticas, muito bem assentadas, passam ao largo dessas questões e têm de si avaliação triunfalista, como expressão de uma democracia pujante, sustentada em quase 100 milhões de eleitores, de quem desconhece os dramas e as vicissitudes. Instituições políticas, de um lado, e vida social, de outro, como duas dimensões apartadas e sem canais efetivos de comunicação entre si, constituem, como sabemos, a ante-sala do inferno.

Abandonada aos seus próprios afazeres, a multidão despolitizada conhece apenas o quietismo ou a rebelião de jovens agenciados pelo crime. A vida popular negocia com a transgressão como forma irrefletida de recusa ao estado de coisas existente, sem canalizar institucionalmente o seu descontentamento. Fosse assim, e pelo menos se poderia esperar por mudanças comportamentais em um parlamento que hoje é capaz de exibir o desrespeito que alguns de seus membros praticam pelos mais singelos procedimentos de autocontrole daquela instituição, sem temer qualquer custo, qualquer ônus político, como demonstrou a Deputada Ângela Guadagnin, integrante da Comissão de Ética da Câmara, com seu "sambinha do escárnio".

Nesse quadro de desvitalização da política, a prática que predomina entre os setores populares é a do apego aos mecanismos heterônomos de cooptação, visando ingressar nas redes de benefícios e assistencialismo com que o partido que está no governo espera reeleger-se. Esse é um quadro dramático, que, evidentemente, não diz respeito apenas ao governo Lula, mas ao ciclo de liberalização que veio se impondo ao país desde Collor, cuja agenda de liquidação do Estado e da presença do público como instância de racionalização e coordenação das ações sociais encontrou larga acolhida entre os seus sucessores.

"Contra Vargas", foi o mote do período FHC. Como se o país pudesse prescindir do papel que as agências públicas estatais detinham na arrumação da vida social. Desde então, depois de duas décadas de repressão aos movimentos organizados, de individualização crescente por força da afirmação mercantil do país, a sociedade, solta, emergiu como força selvagem, movendo-se em nome de sua auto-satisfação, sem reconhecer qualquer utilidade na política, a não ser a da captura individualizada de cada um de seus membros por um centro gravitacional de distribuição de prebendas no seu bairro, na sua comunidade, no seu município.

Quando Lula foi eleito, não se esperava a reversão disso tudo, inclusive pelo reconhecimento de que preservar o poder era a primeira tarefa de um presidente de esquerda. E isso significava não se indispor com as elites econômicas brasileiras e o sistema econômico internacional. Mas se imaginava, sim, que um partido de esquerda, treinado no governo de municípios prósperos como os do interior de São Paulo, poderia impor uma agenda política que, sem confrontar diretamente o que estava dado como limite, se expressasse em um discurso e uma prática persuasivos, no caminho da expansão das energias cívicas de uma sociedade adormecida por tantos anos de exclusão política.

Imaginava-se que o caminho do Brasil talvez pudesse ser o da acumulação de forças no âmbito da vida municipal, em um movimento progressivo de organização popular e de conquista de hegemonia para o partido da democracia social. É bem verdade que não se conhecia, então, o descalabro dessas administrações municipais e o tanto de banditismo que assolava as hostes dos nossos florentinos de ocasião, dos condottieri daquelas pequenas repúblicas paulistas. De qualquer modo, supunha-se que, diversamente do governo FHC, o governo Lula se caracterizaria pelos incentivos à organização da sociedade, à escalada de sua vertebração cívica, republicana, capaz de emprestar concretude à institucionalidade democrática brasileira.

Não foi o que ocorreu. Lula e o maior partido de esquerda do país não emprestaram um grama de energia para a organização política e contribuíram, em muito, para a desorganização dos setores organizados. Até mesmo a idéia de orçamento participativo, de concepção e efeitos práticos questionáveis, mas, pelo menos, uma modalidade de animação da esfera pública, sofreu visível descontinuidade. Pior: Lula e o PT optaram por um estilo de sedimentação e de capilarização da sua proposta de reprodução no poder pela via do assistencialismo, método que, como se sabe, reconhece no eleitor apenas o suporte empírico da necessidade, do auto-interesse, sem lhe proporcionar um horizonte, uma janela de oportunidade para a sua real integração no mundo dos direitos e das liberdades.

Em suma, estamos caminhando para eleições em que a política diz muito pouco para qualquer jovem pobre brasileiro que, com sua atividade, energia, competitividade e capacidade de organização, só enxerga no crime o lugar encantado de recusa ao status quo. E muito pouco também para os brasileiros, jovens ou não, acomodados à heteronomia que conhecem há tempos e que lhes serve de justificativa para o fatalismo em que estão mergulhados.

A história ensina que há conjunturas em que a sociedade, obrigada a refletir sobre a sua circunstância, avança largamente no processo de auto-esclarecimento e na proposição de alternativas originais para os seus impasses. E as eleições no Brasil costumam ser um desses momentos catárticos, em que a sociedade se move, energizada pela convocação às urnas de quase 100 milhões de indivíduos.

Mas, para que essa energia, destampada a cada quatro anos, encontre formas justas e efetivas de realização, é preciso fugir da gaiola de ferro em que nos encerramos no afã de aderir incondicionalmente às contingências sistêmicas do mundo. Inventar, pela política, um novo mundo é parte da tradição imaginativa da esquerda. Sem ela, o risco, a aventura e a disposição de criar vínculos comunitários para a renovação da vida continuarão sendo plataforma exclusiva das facções do mundo do crime.

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Maria Alice Rezende de Carvalho é professora do Iuperj.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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