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Esquerda e populismo na América Latina

Marco Aurélio Nogueira - Julho 2006
 

O biênio 2005-2006 será marcado na América Latina (AL) pela realização sucessiva de eleições em quase todos os países. Os resultados conhecidos até agora e as tendências em curso indicam que a região se está dividindo entre governos democrático-liberais com maior ou menor presença de forças de esquerda, um novo populismo e governos liberal-conservadores. Uma tendência, porém, se destaca: a da constituição de governos mais "sociais" que "institucionais", ou seja, mais dedicados ao diálogo com o povo pobre e com diferentes movimentos sociais do que à construção de instituições capazes de governar sociedades que se estão tornando mais complexas e dilaceradas.

A AL já não se acomoda nas roupas estreitas que lhe foram impostas pelas políticas neoliberais de ajuste e estabilidade. Há mais inquietação e mais movimentação popular - e, paradoxalmente, mais despolitização. Estará caminhando, de fato, para a esquerda? E se estiver, para qual esquerda? Dado o panorama multicolorido, não podemos aproveitar muito da polêmica dicotomia sugerida recentemente pelo sociólogo mexicano Jorge Castañeda entre uma esquerda "boa" - moderna, reformista, autocrítica e internacionalista - e uma esquerda "má", populista, fechada e nacionalista.

A atual efervescência política latino-americana encontra raízes na estrutura das sociedades da região e reflete tanto a sua modernização acelerada quanto a sua globalização.

Sociedades com desigualdades lancinantes, pobreza expressiva e muita concentração de renda e poder são "naturalmente" explosivas e sempre se mostrarão sensíveis a governos que emitam sinais de "vontade", "determinação" e "disposição para o reconhecimento". A própria disputa eleitoral - que se estabilizou na imensa maioria do continente durante as últimas décadas - impulsiona a ascensão de movimentos mais populares, até mesmo porque exige a integração das massas. Na AL, além do mais, devemos considerar também os efeitos negativos das políticas market oriented seguidas por muitos governos. A ênfase no ajuste fiscal, na estabilidade monetária e na reforma do aparato administrativo estatal como caminho para a melhoria das condições de vida não se revelou produtiva. Ao se combinar com uma modernização frenética e com baixo crescimento econômico, tal ênfase prolongou e agravou a pobreza, devastando as estruturas sociais e abrindo passagem para o ressentimento social e a indiferença em relação às instituições políticas e à democracia representativa.

Em muitos países se sentem os sintomas de uma crise dinâmica, que espelha a falência do sistema político tradicional, a baixa efetividade da democracia e o cansaço dos cidadãos com os partidos e a classe política. Mesmo assim, muitos governos seguem políticas públicas moderadas e atuam mais para "administrar o sistema" que para modificá-lo. Poucos são contrários a uma maior integração das economias e dos mercados capitalistas da região. No Chile, Michelle Bachelet se apóia em dois partidos tradicionalmente antagônicos, o Socialista e o Democrata-Cristão, para dar continuidade a políticas de diminuição da pobreza sem questionar o Estado liberal. Na Bolívia, Evo Morales enfrenta uma situação de ingovernabilidade histórica e de afirmação étnica expressiva, atuando mediante compromissos com movimentos indígenas importantes, que lhe dão sustentação. A força demonstrada por López Obrador no México também tem que ver com esse quadro de crise e cansaço. A dinâmica continental não é mais a da manipulação do povo por políticos tradicionais, mas sim a de uma nova identificação entre os pobres e o voto.

Não é possível simplesmente catalogar essas experiências como "boas" ou "más", de esquerda ou populistas.

A idéia de reforma e de mudança não é a que melhor qualifica a esquerda. Nem sequer a disposição de hostilizar o "sistema" serve para distingui-la da direita. O que importa é saber como se chega ao final, quer dizer, qual projeto de sociedade se tem em mente e com quais forças sociais se imagina concretizá-lo. É preciso ver se a atuação mais ou menos reformadora dos governos implicará a criação de novos e melhores incentivos à democratização e, sobretudo, ao aumento das possibilidades de avanço em termos de "emancipação social".

A vitória de candidatos mais progressistas nem sempre é acompanhada de maior probabilidade de que se cumpram as promessas de mudança e de justiça social. É grande o risco de que programas de reforma sejam bloqueados e depois abandonados. Muitos governos vistos como de "esquerda" são ambíguos e adotam discursos e procedimentos que pouco têm que ver com orientações de esquerda. A "Constituição Bolivariana" de Hugo Chávez não se proclama anticapitalista. O presidente Lula não se cansa de declarar que não é de esquerda e seu governo não se destaca por realizações sociais expressivas nem se empenhou para reformar o Estado, o sistema político ou a administração pública, reiterando, ao contrário, todas as "más tradições" brasileiras.

Governos reformadores que não se preocuparem com a construção de instituições democráticas que articulem representação e participação tenderão a se imobilizar com o passar do tempo e a derivar para crises políticas mais ou menos intensas. As próprias sociedades latino-americanas - que são dinâmicas e complexas, e não somente pobres - não avançarão sem Estados administrativos reformados e sem sistemas políticos bem estruturados, até porque estão hoje imersas numa grave crise de subjetividade, ou seja, sem sujeitos políticos capazes de fazer com que os dilemas sociais se convertam em agenda política.

Sempre será o caso, portanto, de avaliar em que medida eleições e processos eleitorais estão a contribuir para que esse quadro se altere em sentido positivo.

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Marco Aurélio Nogueira, professor de Teoria Política da Unesp/Araraquara, é autor, entre outros, de Em defesa da política (2001) e Um Estado para a sociedade civil (2004).



Fonte: O Estado de S. Paulo, 1 jul. 2006.

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